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CRÍTICA: ‘O Agente Secreto’ é o clímax do cinema político e afetivo de Kléber Mendonça Filho

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Aviso de antemão que tentei maneirar bastante nos spoilers de O Agente Secreto, mas coisa ou outra acabou saindo pelos poros.

A primeira vez que Kléber Mendonça Filho me fisgou foi nos meus anos de caloura na Universidade Federal Fluminense. Eu tinha acabado de chegar do interior do estado do Rio de Janeiro, estudante de Filosofia, deslumbrada com a vida universitária e frequentadora assídua do Cine UFF, onde aprendi que o cinema podia ser tão instigante quanto um bom texto de Deleuze ou Benjamin.

Mas, curiosamente, não foi em uma sala de cinema que conheci Kléber. Como toda estudante com poucos recursos e muita vontade de ver o mundo, assisti O Som ao Redor com a minha turma da melhor qualidade, durante uma das ocupações que fazíamos no esqueleto inacabado do IACS — prédio que só foi inaugurado, enfim, no ano passado, já sob o novo governo Lula. Hoje vejo que não poderia haver espaço mais simbólico para um primeiro encontro com o universo desse diretor: assistir a um filme sobre resistência em um prédio ocupado por estudantes é quase uma cena escrita por ele.

De lá pra cá, segui religiosamente cada lançamento, sempre com a mesma expectativa de quem sabe que vai ver algo importante. Tive a sorte de conhecer Kléber de perto, em uma sessão com debate de Retratos Fantasmas — um filme que habita também O Agente Secreto, onde o ator Carlos Francisco revive o projecionista Alexandre e o Cinema São Luiz vira mais uma vez cenário da trama.

O Agente Secreto

O cinema de Kléber Mendonça Filho nos devolve algo que o cinema industrial há muito esqueceu: a noção de que filmar é lembrar. A fotografia e o audiovisual nasceram do desejo de preservar o instante, de lutar contra o esquecimento, de registrar o que somos antes que o tempo apague. Em seus filmes, lembrar não é um gesto nostálgico, mas político — é um modo de existir no mundo, de afirmar uma presença coletiva que insiste, que resiste, que não se deixa silenciar.

Ambientado no carnaval de 1977, em um Recife tomado pela festa e pela violência banalizada, O Agente Secreto, de Kléber Mendonça Filho, começa já desvelando o que será seu eixo central: a corrupção estrutural de uma polícia que não serve à sociedade, mas a domina. Desde as primeiras cenas, o filme expõe, com precisão cirúrgica, uma força policial que não age pela segurança pública, mas pela perpetuação do poder. Kléber demarca essa subversão de papéis com firmeza: o Estado policial, em vez de protetor, é o próprio predador — uma engrenagem autônoma e autoritária a qual todos são obrigados a se submeter.

O fusquinha amarelo de Marcelo (ou Armando) se destaca e se dissolve ao mesmo tempo. Ele se mistura ao trânsito cheio de outros fusquinhas, numa espécie de espelho coletivo que nos lembra que Marcelo é um homem comum, um rosto entre tantos, alguém como todos nós — vivendo e sobrevivendo sob a engrenagem de um país em que o poder se confunde com a força, e a violência se naturaliza.

Nesse cenário em que a ordem é uma farsa e a violência é a norma, acompanhamos Marcelo, interpretado de forma magistral por Wagner Moura. A princípio, ele é apenas mais um homem em fuga que age, com toda razão, como alguém que não cometeu absolutamente nada de errado. Em sua primeira interação com o policial corrupto que simboliza, ali, o estado de coisas, seu gesto de não dar propina, mas somente um cigarro, demonstra de maneira singela sua atitude perante a vida e perante tudo o que o filme retrata.

Mas, à medida que o filme avança, descobrimos que “Marcelo” é, na verdade, Armando — e sua mudança de nome é mais do que um disfarce: é um ato de sobrevivência, um apagamento forçado, assim como o de sua mãe. O mistério que cerca sua fuga vai se revelando aos poucos, e o espectador é conduzido a compreender que o que o move não é o crime, mas uma perseguição infiltrada no âmago do próprio Estado aparelhado pelo poder econômico, tema ainda muito caro nos dias atuais. Aliás, Kleber sempre demarca muito bem em seus filmes o embate entre o “norte” e o “sul” do Brasil, o país do poder econômico, do entreguismo, e o Brasil da resistência – ou, como Aldir Blanc canetou décadas atrás, o Brazil e o Brasil.

No coração dessa trama densa e vibrante, a personagem Sebastiana, vivida magistralmente por Tania Maria, acolhe “refugiados” e surge como uma força telúrica — um eixo moral e emocional que ancora o filme. Recentemente premiada por sua interpretação, Tania entrega uma performance que transcende o estereótipo do alívio cômico: Sebastiana é, ao mesmo tempo, o riso que salva e o gesto que acolhe, uma mulher forjada pela dureza da vida e movida por uma ternura feroz. Sua presença evoca tantas brasileiras que conhecemos — e que reconhecemos — nas ruas, nas feiras, nas casas cheias de gente e de histórias. Mulheres que, mesmo sem farda ou diploma, exercem diariamente o ofício da proteção.

Kléber constrói esse universo com a mesma atenção ao detalhe que já é sua marca. O Recife de O Agente Secreto é pulsante, contraditório, vivo — uma cidade onde o carnaval, ao mesmo tempo em que explode em cor e música, carrega a contagem de seus mortos. O filme nos lembra que a sociedade brasileira sempre foi atravessada pela violência, policial ou não, e que a celebração popular frequentemente convive com o luto. As cenas em que os jornais anunciam o “saldo de mortos” do carnaval revelam o quanto essa brutalidade foi naturalizada — e o quanto a mídia, subordinada às versões oficiais, reproduzia as narrativas da própria polícia, reforçando o controle do discurso e apagando a verdade.

É nesse contexto que emerge uma das imagens mais potentes do filme: a “perna cabeluda”, figura lendária do folclore recifense que, nas mãos de Kléber, ganha outra camada de sentido. O que antes parecia um mito urbano assustador — uma perna solta que persegue os desavisados — torna-se símbolo de ocultação de corpos, de um horror real mascarado pela fabulação popular. A “perna cabeluda” não é assombração, mas vestígio: o que restou visível de corpos desaparecidos e ocultados pela polícia matadora. O imaginário popular, nesse sentido, serve para ocultar o crime do Estado — uma forma de lidar, ainda que inconscientemente, com o terror cotidiano.

Outro símbolo marcante é a presença do tubarão nas telas do cinema, através do filme do Spielberg, em exibição no Cinema São Luiz, e na realidade recifense, já que o animal de fato vive em muitas das praias da costa de Pernambuco. No filme, ele é o presságio do perigo, o rumor do medo coletivo — uma metáfora menos sobre o monstro em si, e mais sobre o que ele representa: o sentimento difuso de que algo sempre pode emergir das profundezas, pronto para devorar quem se desvia da ordem imposta.

Por fim, dos muitos símbolos que Kleber costura com sutileza, o gato de dois rostos, criatura estranha e bela, é o que melhor sintetiza a condição dos moradores daquela casa de “refugiados” — todos com nomes duplos, histórias partidas, identidades que coexistem e se chocam. O gato, com suas duas faces, parece olhar o mundo e a si mesmo, como o próprio Brasil que o filme retrata: um país dividido entre o que foi e o que quer ser, entre o nome imposto e o nome escolhido.

Entre as atuações memoráveis, destaca-se Robério Diógenes, em uma interpretação impressionante como o delegado — um homem cuja autoridade se sustenta na violência e na impostura. Robério constrói um personagem de camadas: ora carismático e paternal, ora brutal e imprevisível, encarnando o tipo de poder que se alimenta do medo e da submissão. Sua presença em cena é magnética, um lembrete de que o autoritarismo, no Brasil, sempre teve rosto humano e voz mansa — o que o torna ainda mais perigoso.

Destacamos uma presença que merece menção honrosa: Laura Lufesi, em atuação brilhante como Flávia, pesquisadora e mãe no Brasil do presente. Ela representa, assim como Armando no passado, a resistência pirracenta da universidade, da ciência e da memória, lutando contra o esquecimento e contra o domínio do capital sobre o pensamento. Flávia é o espelho contemporâneo de Armando — duas figuras que atravessam o tempo com a mesma teimosia em existir, pesquisar, lembrar e proteger.

Devemos mencionar, ainda, a aparição extraordinária de Udo Kier, no papel de um alfaiate judeu que é, ironicamente, confundido com um soldado nazista da Segunda Guerra Mundial. Esse episódio, ao mesmo tempo absurdo e profundamente simbólico, revela a lógica distorcida de uma sociedade que se acostumou a ver o inimigo em quem é diferente, invertendo culpados e vítimas. A sequência, filmada com humor amargo e um senso de estranhamento quase surreal, é uma das mais potentes do longa.

E há algo que une toda a filmografia de Kléber Mendonça Filho, além do olhar agudo sobre o país e sua história: a música. Poucos diretores brasileiros entendem tão bem o poder da trilha sonora quanto ele. De fato, seus filmes arrasam também no som — aquele som que não ilustra, mas narra, que vibra como personagem. Quem esquece a abertura de Bacurau, com o drone sobrevoando o sertão ao som de “Objeto Não Identificado”, na voz inconfundível de Gal Costa? Ou a coleção de discos de Clara, em Aquarius, que é mais do que cenário — é extensão de sua alma, seu arquivo afetivo, sua forma de resistência?

Sônia Braga como Clara em Aquarius (2016).

Em O Agente Secreto, essa tradição sonora continua viva e intensa. Entre ruídos de rádio, vozes de protesto, batuques e sussurros, surgem canções do icônico álbum Paêbiru, de Zé Ramalho e Lula Côrtes — uma obra-prima da psicodelia nordestina, tão mística quanto política, tão poética quanto experimental. Essas músicas não aparecem por acaso: são como raízes sonoras que ligam a narrativa às forças da terra, às vozes ancestrais, à vibração de um Brasil que pulsa por baixo da história oficial.

O cinema de Kléber Mendonça Filho é, afinal, uma arte da lembrança — mas também da escuta. Ele nos convida a ouvir o país, seus ruídos, seus sotaques, suas canções, seus fantasmas. Em seus filmes, lembrar é resistir, e ouvir é uma forma de estar presente — de afirmar que, apesar de tudo, o Brasil continua falando, dançando, cantando, sonhando, como vimos na apresentação do filme no Festival de Cannes.

Sem jamais perder o ritmo ou a humanidade, O Agente Secreto é um filme sobre o Brasil que se repete, sobre o país que transforma sua história em fábula para suportar a dor. Kléber Mendonça Filho não faz um cinema de denúncia fria, mas de percepção sensível: ele olha o passado e o presente com a mesma clareza com que filma o cotidiano — revelando que, sob as máscaras do carnaval e os retratos dos generais, o poder continua dançando a mesma música.

O Agente Secreto estreia nos cinemas todo o Brasil no dia 6 de novembro de 2025. Confira o trailer:

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