Início FILMES Crítica TBT #101 | Vidas ao Vento (2013, Hayao Miyazaki)

TBT #101 | Vidas ao Vento (2013, Hayao Miyazaki)

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Vidas ao Vento

Vidas ao Vento, de Hayao Miyazaki, é um filme de 2013 produzido pelo Estúdio Ghibli, famoso por outras grandes animações, e foi disponibilizado neste ano no catálogo da Netflix. O drama é baseado no mangá Kaze Tachinu, também de autoria do próprio Miyazaki, este baseado em um romance de Tatsuo Hori, todos com o mesmo nome.

Miyazaki era filho de Katsuji Miyazaki, engenheiro aeronáutico japonês, de quem herdou a paixão por aviões, e de Dola Miyazaki, que o inspirou com sua intelectualidade e pensamento crítico. Talvez suas influências digam muito sobre sua obra.

A história é uma adaptação da biografia de Jiro Horikoshi, um engenheiro aeronáutico japonês, responsável pelo projeto do avião Mitsubishi A6M Zero, ou Zero como retratado no filme.

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O Estúdio Ghibli é conhecido por suas obras de grande beleza artística e pela poesia com que delineia as produções. Apesar de eu ter algumas opiniões contrárias à algumas ideias que Vidas ao Vento transmite, não posso deixar de enaltecer a forma com que Miyazaki insere elementos que aprofundam os sentimentos de personagem e autor ao longo da trama.

“O vento se ergue, é preciso tentar viver”

O vento, pode-se dizer, é a personagem principal. É graças a ele que tudo se desenvolve no filme. Desta maneira, suave como uma brisa de verão, a poesia é conduzida nas monções, utilizando-se de uma frase chave e casualidades geradas por esta personagem invisível, conduzindo desta forma toda a história.

A frase do poeta francês, Paul Valéry, que tanto se repete, parece um ponto, um marco entre atos. Hayao Miyazaki é preciso ao inseri-la em diálogos que antecedem mudanças de rumos do longa. Assim, fica aparente que o tom leve é intencional, para se contrapor ao caos que realmente é o pano de fundo da trama.

Em que tempo se passa, afinal?

O filme, em nenhum momento, deixa explícito a época em que se passa, mas com um pouco de tempo de tela, logo vemos que se trata de um período recente à abertura japonesa ao mercado externo. Isto fica claro quando vemos também as inspirações de Jiro nos modelos de aviões de Giovanni Caproni, o designer e engenheiro italiano. Somado a isto, o filme nos mostra o apoio tecnológico alemão para desenvolvimento de maquinário, e logo em seguida a pressão por resultados e o clima de tensão em algumas cenas.

Ora! Clima bélico, aviões japoneses e aliança entre Japão, Alemanha e Itália, fica claro que estamos tratando de anos que antecedem a Segunda Guerra Mundial. Mesmo que nunca mencionada em Vidas ao Vento, alguns de seus envolvidos são citados em breves momentos.

A precisão de um engenheiro e a sensibilidade do artista

Ainda que com este pano de fundo belicoso, a poesia e delicadeza de estratégicas inserções sempre se sobressai. Sutilmente, e aparentemente de maneira desconexa e sem muito sentido com o desenvolvimento da trama, um personagem um tanto misterioso entrega algumas frases que respondem todas as perguntas.

No meio do longa, Jiro se encontra com um senhor alemão que está no mesmo hotel que ele. Esta é uma das poucas partes onde o diretor abre mão de toda a pintura de um mundo lindo aparte da guerra, de toda a ideia de que o Eixo não era tão mal quanto parecia, e apresenta a verdade sobre o momento. Transcreverei a seguir alguns trechos desta conversa.

“Os nazistas são uma gangue de bandidos. Aqui é um lugar bom. Não tem mosquitos, não é quente, o agrião é delicioso. É bom para esquecer coisas ruins […]. Aqui é ‘Der Zauberberg’. ‘A Montanha Mágica’, Thomas Mann? Um bom lugar para esquecer. Esquece que está lutando com a China. Esquece que fez um estado fantoche na Manchúria. Esquece que abandonou a Liga das Nações. Esquece que se tornou inimigo do mundo. O Japão vai explodir. A Alemanha também vai explodir. A Alemanha vai guerrar de novo se não impedirmos.”

Após este denso diálogo, o misterioso senhor alemão some. Fica claro, ao menos para mim, que a ideia desta precisa adição ao filme, tal qual uma nova peça nos aviões, é a mensagem de Miyazaki mostrando que o filme é a sua “Der Zauberberg“.

O diretor fez do filme a sua “Montanha Mágica”, contando a história de Jiro Horikoshi apenas sob a ótica de sua eterna admiração pela aviação. É um ótimo lugar para esquecer todo o conflito, e se concentrar apenas no vento, na construção do sonho, mesmo que o sonho construído por Horikoshi tenha resultado em mais guerra.

A poesia que ameniza; a arte que encobre

Sinceramente, só tenho elogios à arte e à delicadeza nas minuciosas criações do filme. A maestria dos traços corrobora e muito para dar o tom leve à toda a criação de Hayao Miyazaki. No entanto, todo este bonito manto ainda deixa transparecer, mesmo que de maneira muito tênue, o que realmente se passa.

Vidas ao Vento é uma ficção da biografia de Jiro Horikoshi, logo, entende-se que nos é transmitida uma versão imaculada deste personagem. Apenas a sua luta e glória, sem se ater aos pontos negativos.

Claro, temos que levar em consideração também a composição da sociedade na época, a concepção de família e a cultura japonesa. Afinal, o Japão, pouco antes da Segunda Guerra Mundial, deixava o shogunato e se abria ao mercado externo, estando em recente período de “ocidentalização”, mas ainda muito atento aos usos e costumes tradicionais (como bem retratado na animação).

VEREDITO

Em conclusão, para uma obra atual (2013), choca a submissão da mulher, a pressão e os abusos no trabalho, a normalização da priorização ao trabalho e consequente preterimento da família, a romantização de alguns destes fatores e a aparente negação do envolvimento com a guerra.

No entanto, se considerarmos o longa como um retrato da cultura e sociedade japonesas da época, temos aqui uma excelente peça antropológica.

A qualidade do filme não está explicita no que ele apresenta, mas sim nas entrelinhas. Vidas ao Vento é muito mais sobre se deixar levar pelo vento, se permitir passar por cada brecha da obra de Miyazaki, e assim então sorver a poesia, a crítica e a paixão por um sonho.

4,5 / 5,0

E você, é fã das animações do Studio Ghibli? Já assistiu a esta nossa indicação? Deixe sua avaliação e seus comentários e lembre-se de conferir nossas indicações anteriores do TBT do Feededigno. Tem outros TBTs do estúdio lá.



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