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CRÍTICA: ‘A Própria Carne’ é aterrorizante retrato do Brasil

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Poucas coisas tendem a mexer tanto com o brasileiro quanto quando nosso senso de realidade é abalado. Compreender mais detalhadamente o retrato de um perverso conflito armado da maior guerra da América do Sul pode nos fazer entender como a proporção destes eventos viria a impactar a criação do estado brasileiro daquele momento em diante. A Própria Carne escancara a violência armada da Tríplice Aliança e de um Brasil muito antes de ele ser o país que conhecemos hoje. Mas, ao mesmo tempo, quase os suspende no tempo e os equipara, evidenciando privilégios e expondo o racismo presente em todos desde aquela época.

Antes mesmo da Independência do Brasil, à época colônia de Portugal, e do mito da Lei Áurea que ainda entraria em vigor, muitos brasileiros, argentinos, uruguaios e paraguaios vieram a perecer no conflito. Tendo o conflito como o pano de fundo, acompanhamos três desertores do Exército Imperial Brasileiro.

A Própria Carne

Estrelado por George Sauma, Jorge Guerreiro, Pierre Baitelli, Luiz Carlos Persy e Jade Mascarenhas, nos embrenhamos em uma história que mistura a dor da realidade com o horror fictício e quase intangível. 

Tivemos a oportunidade de assistir A Própria Carne durante a Première Nights do Festival do Rio, com a presença dos integrantes da produção do filme, como o diretor Ian SBF e os produtores, Alexandre Ottoni (Jovem Nerd) e Deive Pazos (Azaghal), que nos concederam entrevista durante o evento.

Prometo que farei o máximo para não revelar detalhes do roteiro, mas uma coisa ou outra pode acabar fugindo do controle, pois, a fim de dar um melhor contexto, talvez precise adentrar em elementos narrativos do longa.

Como primeira empreitada cinematográfica do Jovem Nerd, em parceria com Ian SBF, A Própria Carne apresenta elementos visuais e signos que dialogam com o público brasileiro, transmitindo temores muito característicos e compreensíveis para nós, mas também, símbolos universais de perigo.

Luiz Carlos Persy, como o Fazendeiro, e Jorge Guerreiro, como Gustavo fazem do longa uma obra de arte à parte. A estranheza do Fazendeiro e de tudo que cerca provocam um arrepio na espinha desde seus primeiros momentos, quando ele emerge das sombras e adentra a luz pela primeira vez para encarar o trio de desertores.

A figura antagônica no filme se estende para além da presença do Fazendeiro. Mais do que aquilo que se vê em cena, a Guerra do Paraguai é, no longa, uma sombra que mancha a história do continente latino-americano e um elemento que pode representar a morte do que restou dos três desertores após o tempo no campo de batalha.

Ao chegarem na fazenda, se deparam com a privação de tudo o que são e do que podem fazer. À medida que o filme se desenrola, o longa desnuda nossos personagens de seus segredos até então, bem guardados, apenas para lançá-los em uma espiral de loucura.

Flertando com o sobrenatural o tempo todo, A Própria Carne nos provoca ojeriza ao apresentar sua narrativa em um design de produção muito competente — que na produção do longa ficou a cargo de Thiago Lamarca, o Rex.

De modo curioso, o filme parece se dispor a arranhar o interior de nossas mentes com cenas de horror corporal extremo, apenas para nos surpreender a quase todo momento. Fugindo do tropo do “preto mágico”, cunhado por Spike Lee, o longa se abstém de atribuir ao personagem negro a função de guiar os “heróis” brancos da história. Gustavo não é o primeiro a morrer, e sua presença no longa tem importância e peso — o que abre espaço para que as dinâmicas entre Jorge Guerreiro e Luiz Carlos Persy floresçam.

As atuações de George Sauma, Pierre Baitelli e Jade Mascarenhas são dignos de nota, dando especialmente a Sauma um tom distinto daquele ao qual estamos acostumados a vê-lo, nas comédias.

A Garota de Mascarenhas causa incômodo pela forma como se porta — e esse é justamente o intuito da personagem; ela foi feita para ser assim. Quando contracena com Baitelli, os dois brilham em cena, criando uma dinâmica tão disfuncional como a mente de seus personagens.

Com um texto que vai além do que se é esperado de um filme e uma produção de terror brasileiros, o longa se afasta das demais produções do Jovem Nerd e ousa colocar o dedo na ferida, escancarando as faces mais terríveis do ser humano. Rondados por um mistério perverso que não compreendem, ao fugir, Gabriel, Gustavo e Anselmo logo percebem, ao tentar fugir, que talvez encontrem fora da guerra um caminho pior do que o campo de batalha.

Funcionando para além de uma simples história de cautela, ouso dizer que A Própria Carne é um filme verdadeiramente brasileiro — um retrato que expõe o privilégio branco desmedido e os preconceitos de uma terra banhada em sangue negro e indígena.

Com símbolos que vão além do que conseguimos compreender, somos presenteados com o horror e suas múltiplas faces na sua mais pura forma: a face de lutar uma guerra covarde, a de fugir dela e ser sentenciado à morte — e a do imaginável. 

A Própria Carne funciona para mim como uma expansão do já vasto multiverso de histórias que poderiam facilmente ter escapado de um dos roteiros do Nerdcast RPG, escritos por Leonel Caldela e suas campanhas aterrorizantes. Ao enveredar a narrativa por caminhos inesperados, o filme nos surpreende a cada curva do roteiro. E, por mais que, próximo do meio do terceiro ato, o filme perca a força, ele nos surpreende pela forma como opta por finalizar a história. 

Acostumados com uma forma americanizada de produzir roteiros e obras megalomaníacas, A Própria Carne é contida em si e possui sua própria forma e seu tempo para contar a história. E ao seguir o caminho oposto da máquina de cinema norte-americano, o longa acerta ao não erotizar a guerra e não mostrar o embate como algo glorioso, foca em seus desertores, pessoas cansadas que apenas buscavam a liberdade.

Sem autoexplicações, o longa não pega na mão de seus espectadores, nem subestima sua inteligência; distanciando-se de filmes de terror atuais, o longa independente brasileiro nos causa uma sensação de pertencimento e identificação muito singular, colocando no personagem de Guerreiro a vontade única de ser livre mais uma vez.

Confira o trailer do filme:

A Própria Carne estreia nos cinemas no dia 30 de outubro.

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