Sintonia: “A favela venceu!”

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Sintonia: “A favela venceu!”

Sintonia é a nova produção nacional da Netflix que acompanha três amigos de infância: Nando (Christian Malheiros), Doni (MC Jottapê) e Rita (Bruna Mascarenhas).

Nascidos e criados na realidade da “quebrada” paulistana, eles lutam diariamente para conquistarem seus sonhos, porém em caminhos completamente diferentes – Doni sonha em se tornar um cantor famoso de funk; Rita trilha seu caminho na igreja evangélica; já o Nando vai ganhando ascensão no mundo do crime organizado e do tráfico – mas, acima de tudo, a amizade entre os três prevalece e é um dos pontos mais altos da primeira temporada.

IDEALIZAÇÃO DO PROJETO, INSPIRAÇÃO E DIREÇÃO

A série foi idealizada por KondZilla – quem não acompanha o mundo do funk talvez não tenha ouvido falar dele antes. Esse é o nome artístico do produtor Konrad Cunha Dantas, que começou dirigindo clipes e hoje é um dos mais bem-sucedidos empresários do gênero, que começou na periferia e abalou o país. Além disso, seu canal no Youtube é o maior do Brasil, com quase 51 milhões de inscritos, na frente de YouTubers conhecidos, como Whindersson NunesFelipe Neto.

Kond é o criador, produtor executivo e também dirigiu alguns episódios de Sintonia. Ele contou com a parceria de Guilherme Quintella e Felipe Braga para fazer o projeto avançar. Com produção de Losbragas (formada por Alice Braga, Felipe Braga e Rita Moraes), a primeira temporada tem 6 episódios de mais ou menos 40 minutos cada um.

Entre os diretores que inspiraram o diretor no processo de criação da série estão: José Padilha (Tropa de Elite), Kátia Lund (Cidades dos Homens) e Luiz Bolognesi (Uma História de Amor e Fúria).

Sintonia se destaca muito por conta da direção – que não impecável, mas acerta bastante. As escolhas de câmera são muito bem feitas e os planos utilizados nunca se tornam cansativos. Existe uma estética de videoclipe de funk em alguns momentos – o que já era esperado –, no entanto isso fortalece ainda mais a ideia do criador de se aproximar de um público específico.

O roteiro tem acertos – falarei mais a respeito a seguir –, porém, infelizmente, ele peca em algumas escolhas que acaba deixando a série sem um foco. Além disso, a falta de consequências para determinadas ações tomadas pelos personagens prejudicam um pouco a série.

Outro problema é a escolha narrativa adotada em alguns momentos que se assemelha muito com as narrativas de novelas, onde um personagem precisa expor através de diálogos algo que é óbvio.



UM OLHAR DA FAVELA DE DENTRO PARA FORA: FUNK, IGREJA E TRÁFICO

Inicialmente, a ideia do KondZilla era desenvolver um curta-metragem sobre três amigos que se esforçavam para comprar um tênis de R$ 1.000,00. No entanto, quando ele se juntou com os produtores foi decidido que o melhor era fazer uma série sobre esse universo pouco falado e retratado, e de pessoas pouco representadas.

KondZilla nasceu e cresceu na periferia do Guarujá, em São Paulo, assim como a maioria dos atores que também são de origem periférica. Isso torna Sintonia uma série que apresenta um olhar da favela de dentro para fora. Não é algo feito por alguém que nunca vivenciou aquela realidade, muito pelo contrário.

A história de Sintonia explora a interconexão da música, tráfico de drogas e religião, narrados do ponto de vista de pessoas diferentes. Felizmente, a equipe responsável pelos roteiros conseguiu construir algo surpreendente.

A produção tem uma sensibilidade que acaba quebrando alguns estereótipos, como o do MC, o da pessoa da igreja e até mesmo o do criminoso. Isso acontece por conta da abordagem humana que é feita dos personagens, que têm camadas e não são definidos apenas como o funkeiro, a evangélica ou o traficante; vai muito além.



PERSONAGENS

Da esquerda para direita, Nando (Christian Malheiros), Doni (MC Jottapê), Rita (Bruna Mascarenhas).

Alguns dos pontos mais altos de Sintonia são os personagens e a relação de amizade entre o trio protagonista que é bastante convincente e um dos maiores acertos do roteiro.

Christian Malheiros (Sócrates) dá vida ao Nando, um rapaz forte, estratégico, que precisou amadurecer cedo e aprendeu a sobreviver naquele meio. Ele é casado, tem uma filha para criar e viu no tráfico uma maneira de ascender e dar uma vida melhor para a família. O ator injeta muita sagacidade no personagem e consegue, aliado ao texto, tornar Nando uma pessoa com a qual o telespectador pode se identificar em vários momentos, principalmente se você for negro e da periferia.

MC Jottapê (O Menino da Porteira) interpreta Doni, um garoto que tem o sonho de viver da música, porém a família dele não compartilha dessa mesma vontade. Dos três protagonistas ele é o que teve uma melhor estrutura familiar e exatamente isso acaba tornando-o uma pessoa muitas vezes mimada e inconsequente, mas o personagem não se resume a isso. Em um dos momentos mais fortes da história, o ator precisa colocar bastante emoção na atuação, resultando na cena com maior carga dramática do programa.

Bruna Mascarenhas vive a Rita, uma mulher independente –  devido a uma família problemática -, forte, que assim como Nando, precisou amadurecer cedo. A atriz teve apenas duas semanas para se preparar para interpretar a personagem, e ela se saiu muito bem. O arco dela é um dos que mais poderia ser afetado no que diz respeito à aceitação e identificação do público, porém o roteiro e o ótimo trabalho da atriz conseguem “burlar” isso, sem precisar apelar para algo estigmatizado.

São personagens diferentes que estão em busca de seus sonhos e o que os unem além da amizade é o desejo de encontrar seu lugar no mundo.

É válido ressaltar que o elenco é formado integralmente de talentos desconhecidos do público da televisão. Alguns dos atores são ex-detentos formados em um curso de teatro dentro da Penitenciária Desembargador Adriano Marrey, que fica em Guarulhos, São Paulo. O grupo de traficantes que aparecem nas reuniões do crime é interpretado por pessoas que fizeram parte desse projeto, reforçando mais uma vez o poder da arte e da cultura na vida das pessoas.

As cenas dessas reuniões mostram o talento desses atores, eles conseguem passar muita veracidade através dos diálogos e da tensão, um ótimo trabalho que deve sim ser reconhecido.



TRILHA SONORA

A trilha sonora de Sintonia foi produzida pelo Tropkillaz, que também assina a música instrumental da série, e conta com bastante funk, como hits dos MCs Hollywood, Kekel, Kevinho, o rapper Hungria, entre outros.

Temos também as três músicas do MC Doni, Te Amo Sem Compromisso, que já bateu mais de 11 milhões de visualizações e é um hit absoluto, Passei de Nave e Não Vai Ser Fácil.

A playlist completa está disponível em todas as plataformas digitais para você conferir e ficar viciado. Corre lá!

POR QUE É UM EQUÍVOCO DIZER QUE SINTONIA ROMANTIZA A VIDA NA FAVELA E O TRÁFICO

É indiscutível que Sintonia toca em temas sensíveis e que isso, na maioria das vezes, levanta polêmicas na internet e fora dela. Com o lançamento da série no dia 9 de agosto, começaram surgir comentários sobre uma possível romantização da vida na favela e sobre o estereótipo do negro que vive na “quebrada”.

Os atores Christian Malheiros e Bruna Mascarenhas falaram a respeito disso em entrevistas.

Para o MDEMULHER, Malheiros declarou:

“Romantiza quem tem um olhar podre e estereotipa quem não entendeu nada do que a gente está falando. Porque a gente está trazendo pessoas reais para cena, não um estereótipo, não está defendendo o bandido. Eu não sou a favor do crime, mas eu entendo porque aquele cara está no crime. É entender para transformar.”

Mascarenhas disse o seguinte para o GQ:

“[…] Precisamos encarar a realidade com muito pé no chão, sem preconceitos, para aí sim mudarmos realmente o panorama. É essencial que possamos retratar o tráfico sem endeusar ou maquiar nada. E não só o tráfico, mas o que vem por trás dele. Não podemos esquecer da milícia, todo um jogo de interesse que tem por trás desse falso moralismo de que bandido bom é bandido morto. Enquanto a gente não enxergar por todos os lados, as coisas nunca vão mudar – ou talvez mudem, mas não para todos. Ter a oportunidade de mostrar isso numa plataforma como a Netflix, que alcança 190 países, é quase um ato de resistência. Vide o momento do nosso país.”

Durante a produção, Paulo Bronks, homem da periferia que atua na série e é uma figura muito conhecida na internet e na cena do funk, teve um papel importante como consultor de roteiro. Cuidados como esse serviu exatamente para não ter um resultado final repleto de clichês e estereótipos – como já vimos bastante em outras mídias que retratam essa realidade.



 “A FAVELA VENCEU!”

Sintonia busca se conectar com o comportamento do jovem da favela e faz isso muito bem. O que não seria possível sem a visão do KondZilla e o seu lema “a favela venceu!”.

O lema, que direciona e inspira seus negócios, surgiu depois de assistir ao documentário Reincarnated, do rapper norte-americano Snoop Dogg em sua guinada para o reggae. Na reflexão de Dogg, o reggae é um estilo que fala de um povo que luta. E há muito mais pessoas que lutam do que vencem.

Em entrevista para o site Glamurama, Kond falou:

“Eu acredito que ao projetar a vitória fica mais fácil vencer. Foi daí que surgiu o lema, para que as pessoas acreditem que irão vencer.”

Ao criar uma série que fala sobre sonhar e correr atrás de seus objetivos, ele reforça ainda mais esse lema incentivando mais pessoas.

KondZilla fala sobre a série e o sonho de criar e dirigir uma ficção:

https://www.instagram.com/p/BohCqdRF5MC/

Sim, Kond, a favela venceu!

Não julgue Sintonia erroneamente por conta da temática – funk, periferia, tráfico e igreja –, pois esse é mais um produto audiovisual nacional de muita qualidade, não deixe isso passar despercebido, não no momento em que estamos vivendo uma gigantesca desvalorização da nossa cultura.

Nossa nota

Confira o trailer:

Todos os episódios de Sintonia estão disponíveis na Netflix. Ainda não foi confirmada uma segunda temporada, mas o final da primeira deixa tudo preparado para uma possível renovação. Ademais, essa história tem bastante potencial e merece continuar sendo contada.

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