Até 2002, quem entrava no cinema para assistir a um filme de James Bond sabia exatamente o que esperar. Durante quarenta e quatro anos, o espião mais famoso do mundo era sinônimo de cenas de ação exageradas e inverossímeis, vilões insanos com planos nada modestos, acessórios de última tecnologia e o eterno charme e elegância. Bond enfrentava todos os perigos sem estragar o penteado ou desarrumar o smoking.
No entanto, a franquia acabou adentrando em um mundo onde as leis da natureza não tinham mais influência alguma. Por tudo isso, a franquia carecia de uma reformulação completa, de uma renovação aos moldes de Batman Begins ou Superman – O Retorno. E ela saiu muito melhor do que a encomenda. 007: Cassino Royale é um filme diferente de qualquer outro da série, o que provavelmente decepcionou alguns fãs mais ardorosos do agente.
Na trama, a primeira missão de James Bond (Daniel Craig) como agente 007 o leva à Madagascar. Sua tarefa é espionar um terrorista, mas nem tudo sai como o planejado. Bond decide espionar por conta própria o restante da célula terrorista, o que o leva às Bahamas. Lá conhece Alex Dimitrios (Simon Abkarian) e sua namorada, Solange (Caterina Murino). Alex está envolvido com Le Chiffre (Mads Mikkelsen), o banqueiro de organizações terroristas espalhadas pelo planeta, que pretende conseguir dinheiro em um jogo de pôquer milionário em Montenegro, no Cassino Royale. O MI6 envia Bond para jogar contra Le Chiffre, mas para esta tarefa o agente 007 terá a companhia de Vesper Lynd (Eva Green).
Pela primeira vez em toda a história da série, há uma preocupação igual com o enredo, a ação e os personagens, construídos como nunca antes. A direção segura de Martin Campbell consegue equilibrar todos estes pontos e mantê-los sempre em alto nível, realizando uma grande obra cinematográfica por si só.
A proposta de 007: Cassino Royale é fazer o espectador esquecer tudo o que se sabia sobre o personagem. Aqui, James Bond não é o melhor agente do mundo, que age com a razão e é praticamente infalível no que faz. O roteiro de Robert Wade, Neal Purvis e Paul Haggis consegue a façanha de transformar Bond em um ser humano. Aqui, o espião se machuca, sangra, comete erros, sente medo e se apaixona. Como nunca antes, James Bond aqui é um ser humano de verdade, que age diversas vezes pelo instinto e não consegue esconder seus defeitos.
Encarnando Bond como uma bomba prestes a explodir, Daniel Craig revela-se a escolha mais acertada para o papel. Sua virilidade e aspecto carrancudo transmitem constantemente um sentido de ameaça, como se a vida de todos ao redor do personagem estivessem em perigo. Ao mesmo tempo, Craig é eficiente nos momentos mais dramáticos, tornando-se um dos principais responsáveis por esta completa reestruturação do personagem.
Se o roteiro aborda o protagonista de modo diferente ao qual o espectador está acostumado, o mesmo pode ser dito da “Bondgirl“. Na realidade, Vesper Lynd (Eva Green) não é uma Bondgirl propriamente dita. Seu papel não é apenas decorativo com outras mulheres também deslumbrantes que já passaram pela franquia. Lynd também é uma personagem bem construída, uma profissional extremamente capaz, embora ainda não esteja preparada para o mundo violento no qual se mete. Campbell oferece boa parte da projeção para a personagem, tratando-a com sensibilidade, como na belíssima cena no chuveiro.
Mas talvez o ponto forte das atuações de Craig e Green seja a incendiária química entre os dois. A cada cena em que aparecem juntos, a tela parece se iluminar. Alguns dos momentos entre Bond e Lynd figuram entre os melhores de toda a série, com importantes – e inéditas – revelações sobre o personagem principal. É o caso, por exemplo, da primeira vez em que se encontram no trem e estabelecem um maravilhoso duelo de inteligência e sagacidade.
Até o nosso vilão de 007: Cassino Royale não é o típico antagonista de James Bond. Interpretado com frieza assustadora pelo dinamarquês Mads Mikkelsen, Le Chiffre não tem como objetivo conquistar ou destruir o mundo. Aliás, ele não é nem o verdadeiro objetivo da busca de Bond, mas acaba revelando-se um oponente quase letal para o espião.
Realismo, aliás, é a palavra chave do filme. Desde as brigas cruas e até desajeitadas, passando pelas cenas de ação que cansam e machucam os personagens e chegando à trama com os dois pés no chão, tudo parece possível de acontecer. É um fato novo e extremamente bem-vindo a uma série que se acostumou com o exagero.
Da mesma forma, Martin Campbell se sai espetacularmente bem em um dos maiores desafios narrativos de Cassino Royale: o jogo de pôquer. Ocupando boa parte do filme, a partida era o risco que o cineasta corria de perder o ritmo da obra. No entanto, o diretor consegue manter a tensão sempre alta, alternando os momentos mais parados com outras cenas agitadas nos intervalos das partidas. Nestes intervalos, há ainda um dos momentos mais icônicos de toda a série.
Sem dúvidas um dos maiores destaques é que a trama atua em dois polos: A ação física, do combate corpo a corpo, e a ação cerebral do trabalho intelectual da espionagem e do mundo do pôquer, por isso requer paciência e atenção, embora o frenesi intelectual da mesa de jogo mantenha o espectador ligado à narrativa.
007: Cassino Royale volta no tempo e se apresenta como uma ótima diversão que há tempos não víamos na franquia. Mostrando um James Bond recriado do zero, marcantemente repaginado e que agora tem um ator que injeta perigo e arrogância em sua postura através de uma narrativa que abandona de vez o fantástico pelo realismo. Simplesmente, essa produção apresenta o melhor Bond desde a aposentadoria de Sean Connery.
Confira o trailer do longa:
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