CRÍTICA: ‘Duna: Parte 2’ A espiritualidade em meio às areias

    Pouquíssimas obras da ficção conseguem ser tão importantes quanto a criação do escritor estadunidense Frank Herbert. Duna lançado oficialmente no ano de 1965 arrastou as premiações literárias como o Hugo e Nebula tal qual uma avalanche de areia. Abordando temas como ecologia, história, imperialismo e religião em um mundo complexo e dispare do nosso, bem, talvez nem tanto. O livro foi durante anos considerado infilmável, onde muitos duvidavam da transposição de sua escala colossal para as telas da sétima arte.

    Na década de 70 o cineasta, escritor e roteirista chileno Alejandro Jodorowsky munido de uma equipe dos sonhos fez a primeira tentativa de passar das páginas para o cinema uma história complexa e cheia de nuances. Seu grupo composto pelo quadrinista Moebius, o artista plástico H. R. Giger, o roteirista Dan O’bannon, o pintor Salvador Dali e muitos outros, tentavam compor algo nunca visto, uma mistura de ficção científica e LSD, uma lisergia no deserto, mas como nada é perfeito este projeto não deu frutos direitos, e este filme megalomaníaco nunca saiu do papel. Entretanto graças a esse fracasso tivemos algumas das obras mais importantes dos mundo imagináveis, os quadrinhos Incal (Jodorowsky e Moebius, 1980) e A Casta dos Meta Barões (Jodorowsky e Juan Giménez, 1992) e o filme Alien o Oitavo Passageiro (Dan O’bannon, H. R. Giger e Ridley Scott, 1979).

    Em 1984 Duna fez sua primeira aparição nas telas de cinema pelas mãos do excêntrico diretor David Lynch. Neste filme Lynch tomou várias decisões adaptativas, modificando elementos da obra original, e lhes confesso que fiquei assustado na primeira vez que vi quando na infância. Produzido por Dino de Laurentiis, podemos entender este filme como uma tentativa da época de encontrar um novo Star Wars, mas falhou miseravelmente fazendo com que o cineasta nunca mais desejasse dirigir um blockbuster. Com um elenco repleto de grandes nomes como Patrick Stewart (o capitão Picard de Star Trek e o professor Xavier de X-Men), Sean Young (Rachel de Blade Runner) e Sting (da banda The Police), Duna de David Lynch demonstrou que existia uma possibilidade de criar as areias e os vermes do deserto para o Grande público.

    SINOPSE

    Paul Atreides se une a Chani e aos Fremen enquanto busca vingança contra os conspiradores que destruíram sua família. Enfrentando uma escolha entre o amor de sua vida e o destino do universo, ele deve evitar um futuro terrível que só ele pode prever.

    ANÁLISE

    Duna

    Em 2021 este universo ganhou vida pelas mãos do diretor franco-canadense Denis Villeneuve, podemos ver em alto e bom tom a grandiosidade do planeta Arrakis em meio a uma disputa espacial feudal, com casas galácticas, exércitos poderosos e criaturas que rasgam o chão, tudo envolto por uma fé profética. E neste ano pude ver o desfecho dessa epopeia, e sem mais enrolação vamos para Duna Parte 2.

    Após a traição do Imperador Shaddam Corrino IV (Christopher Walken), Paul Atreides (Timothée Chalamet) e sua mãe Lady Jessica (Rebecca Ferguson) se veem desolados em um planeta inóspitos sem o poder que tinham antes, agora recorrem aos verdadeiros moradores do planeta os Fremen, e com eles tentaram sobreviver e compor uma vingança. No primeiro momento do filme vemos o que Duna de Villeneuve tem de mais poderoso, a capacidade visual de narrar com imagens os contextos e conceitos.

    Ao adentrar a nova cultura Paul e sua mãe tem de compreender e aprender a vivência do outro, entender sua linguagem e modus operandi. Vagando Pelo deserto o protagonista duvida de si mesmo e da profecia que carrega, a todo momento falando que não é o escolhido, o tal Kwisatz Haderach, o ser que unirá os Fremen contra um inimigo externo que são representados pelos exagerados e até mesmo opulentos Harkonnen. Estampados com uma boa atuação de Stellan Skarsgård em seu papel da figura standard de Barão Vladimir Harkonnen.

    Duna

    A jornada de Lady Jessica segue um ponto similar, ela adentra ainda mais na espiritualidade do povo da área, mesclando seus conhecimentos como Bene Gesserit aos de reverenda madre da população local, chegando ao ponto de transcender espiritualmente e mudar os rumos da trama. Nos colocando o questionamento de o quão uma cultura é influenciada diretamente pelos anseios de um grupo estrangeiro dominante, o quão uma forma de imperialismo afeta um grupo social. A produção do filme optou diferentemente do livro por não assumir as referências Islamo-africo-árabes de forma direta.

    A obra original apresenta uma série de personagens e títulos que possuem origem islâmica. O protagonista, Paul Atreides, é chamado por diversos títulos islâmicos, como “Muad’Dib” e “Usul”.

    Além disso, outros personagens, como o Imperador Shaddam IV e seu exército Sardaukar, também possuem nomes e títulos referentes, onde os Sardaukar são inspirados diretamente pelos guerreiros Janízaros do antigo império Otomano.

    Além dos termos e dos personagens, o livro também apresenta diversos paralelos com a história. A resistência dos fremen contra os opressores e a liderança de Paul como um líder messiânico são reminiscentes de figuras históricas como o Imã Shamil, um líder islâmico que resistiu ao império Czarista russo no seculo XIX.

    No filme, o personagem Stilgar (Javier Bardem) toma ares de um devoto da fé, reforçando os feitos de Muad’Dib, e até mesmo servindo de figura cômica onde sua fala “Lisan Al Gaib” se tornou meme. Outro personagem de destaque foi a aquisição de Feyd Rautha (Austin Butler), sobrinho mimado e psicótico do Barão Harkonnen. A apresentação do personagem se dá em uma cena que me deixou boquiaberto, uma inspiração direta no visual biomecânico do artista plástico H. R. Giger.

    Giedi Prime o planeta sede da casa Harkonnen é filmado é uma forma aterradora e bela, iluminado por um sol negro onde as cores deste mundo são brutalmente destacadas entre o branco e preto, e sendo sincero foi uma surpresa descobrir que essa cena foi filmada com uma câmera infravermelha para que se conseguisse tais tonalidades. Neste momento volta ao jogo as Bene Gesserit demonstrando seus controle por de trás dos panos desse jogo de poderes que é o universo de Duna.

    Duna

    Ao decorrer da trama vemos a assimilação de Paul a cultura local, se colocando em desafios e lutando em suas missões, até chegar o momento onde ele se aceita como o escolhido de muitos nomes, Kwisatz Haderach, Lisan Al Gaib e aquele que cavalga os Vermes Gigantes. Buscando unir os Fremen de diversas regiões para combater a dominação. Chani (Zendaya) em diversos momentos demonstra desaprovação pela fé cega que Paul recebe.

    Podemos ressaltar uma crítica pontuada diversas vezes pelo Autor em suas entrevistas, onde Herbert enfatizava o cuidado que devemos ter com figuras messiânicas, e também uma crítica a figuras históricas de Lawrence da Arábia, onde no início do século passado unificou tribos islâmicas contra a dominação Otomana, mas deixou para trás um rastros de problemas políticos.

    Alguns dos momentos mais belos da película é o funeral de um membro da tribo, onde é retirado toda a água de seu corpo e despejada em um lago sagrado, demonstrando o cuidado que eles têm com seu bem mais precioso. Outro grande momento é a chegada do Imperador Shaddam IV e sua filha a princesa Irulan Corrino (Florence Pugh) com sua comitiva e exércitos ao planeta Arrakis, onde vemos uma nave abobadada totalmente reluzente, indo de encontro a Paul para retirá-lo de sua vingança e tomarem de volta o bem mais precioso do universo, a especiaria produzida pelos vermes gigantes, que é ao mesmo tempo um misto de petróleo, LSD, aumentador de inteligência e um prolongador de vida.

    O desenho sonoro em Duna Parte 2 é aspecto que merece destaque. Muitos dos sons do filme foram inventados a partir de experimentos com areia. Tornando o som do filme rico e detalhado, muitas vezes se entrelaçando com a trilha sonora composta por Hans Zimmer. A trilha, que utiliza instrumentos inventados por Zimmer, assim como instrumentos reais, cria uma experiência sonora única e envolvente.

    Duna

    Denis Villeneuve conseguiu fazer algo de difícil natureza, transpor uma narrativa com tantos elementos que em muitas vezes é passada na terceira pessoa de forma mental para as telas do cinema. Em uma entrevista o diretor disse que os filmes que mais o impactaram foram aqueles que são guiados visualmente e sonoramente, e com Duna tanto o primeiro quanto o segundo conseguiu passar várias nuances com gestos e efeitos, dando de certa forma um ar contemplativo.

    O visual e os figurinos são estonteantes, me deixando boquiaberto, compreendo que algumas pessoas queriam algo próximo dos storyboard’s de Moebius para Duna de Jodorowsky, mas são obras idealizadas por diretores e artistas diferentes. Mas tenho minhas ressalvas, e creio que na tentativa de deixar os elementos visuais ganharem mais ênfase alguns contextos não foram tão bem abordados.

    Como a imponente Guilda Espacial que comanda o comércio não só da especiaria mas de todos os produtos da galáxia, e os Mentat’s que são computadores humanos que atingem um grau tão grande de inteligência pelo grande uso da especiaria, e que também estão no páreo para ver quem se dará melhor com este jogo de poder no planeta deserto.

    Tendo em vista este apontamento, Duna Parte 2 é um filme que transcende as expectativas. Conseguindo elevar a ficção científica a um novo patamar, criando uma experiência imersiva e impactante. A combinação de imagem e som, o desenho sonoro inventivo, a história profunda e o elenco incrível fazem de Duna: Parte 2 um verdadeiro espetáculo.

    VEREDITO

    A Adaptação de Duna por Denis Villeneuve captura a essência da obra de Frank Herbert ao abordar temas como poder, fanatismo e manipulação política. E tenta nos lembrar da importância de questionar figuras de influência e entender que o poder pode corromper até mesmo as pessoas mais bem-intencionadas. Duna é uma história trágica que nos faz refletir sobre os perigos do poder e a importância de resistir às armadilhas do destino.

    Nossa nota

    5,0 / 5,0

    Confira o trailer do filme:

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