CRÍTICA – Beginning (2020, Dea Kulumbegashvili)

    A aproximação entre religião e cinema possibilita aprender mais da expressão artística, além de novas linguagens e compreensões que possibilitem diferentes interpretações do religioso.

    E é exatamente essa a proposta de Beginning, chancelado com o selo de Cannes e tratado como obra-prima em sua passagem pelos festivais de Toronto, onde recebeu o Prêmio da Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica e de San Sebastián, do qual saiu com a Concha de Ouro e os troféus de Melhor Direção e de Melhor Roteiro.

    Além de todas essas conquistas notáveis, ainda transformou a estreante em longas-metragens Dea Kulumbegashvili, diretora georgiana de 35 anos, em uma sensação autoral do cinema.

    SINOPSE

    Beginning começa com um ataque à comunidade de Testemunhas de Jeová através do lançamento de coquetéis molotov. Depois desse evento, Yana (Ia Sukhitashvili) busca pela verdade em torno do crime, mas é atropelada por uma sociedade que a despreza, e em particular por um policial (Kakha Kintsurashvili) que desencadeia uma série irreversível de eventos traumáticos.

    ANÁLISE

    Ambientado em uma cidade provinciana no sopé das montanhas do Cáucaso, Yana vive um crescente descontentamento interno, enquanto luta para dar sentido ao mundo ao seu redor.

    Em resumo, retrata a resiliência de uma mulher perante a hostilidade e a violência com consequências dramáticas e devastadoras. A necessidade de entender o mundo de uma personagem que sofre violência psicológica o tempo inteiro é um exercício complexo que choca também com as questões do isolamento social que vivemos atualmente.

    A cena de abertura já é significativa para apresentar as escolhas estilísticas da diretora Dea Kulumbegashvili. Em parceria com o diretor de fotografia Arseni Khachaturan, eles definem que o filme deve ser composto por diversos longos planos estáticos.

    Por mais que tenha a presença de cenas intensas, o estilo da cineasta faz com que o restante da narrativa seja minimalista e tenha um ritmo lento, capaz de levar o espectador a observar cada fotograma e interpretar suas possibilidades de significado.

    Contado com um diálogo esparso e um trabalho de câmera extremamente lento e observador, que lembra os filmes de Michael Haneke, Carlos Reygadas e Chantal Akerman, a trama desvenda a vida interior de uma mulher que enfrenta um casamento e uma encruzilhada existencial.

    Kulumbegashvili representa essa prisão a partir dos próprios planos fechados e estáticos, e longos, mas na medida correta para que seu espectador se conecte e explore como bem entender essa personagem tão espetacularmente difusa e complexa que é Yana.

    Beginning constrói uma parábola sócio-religiosa cuja trajetória deixa portas abertas e perguntas sem respostas. O início profético elabora um intenso jogo narrativo, onde um plano fixo é capaz de abrigar várias dimensões: o castigo no presente, o sacrifício na tela e o assédio (por intolerância) sob o mesmo teto.

    A diretora subjuga os corpos no formato 4:3 e, ao mesmo tempo, deixa de fora do campo os elementos narrativos ameaçadores, enquanto o silêncio dos planos fixados expõem a submissão da protagonista à ordem patriarcal que marca sua vida.

    A revolta pessoal de Yana toma, no entanto, um caminho contraditório, entre a beleza de uma viagem astral e o desconforto de reconhecer o desejo em um ato repulsivo. Afinal, este é um teste de fé.

    A coprodução franco-georgiana trabalha as incógnitas de uma protagonista que jamais se revela completamente e a temporalidade de uma narrativa minimalista centrada na observação. Assim, a obra estende o poder hipnotizante das imagens para possibilidades específicas de estudo de personagem e de construção autoral da arte.

    VEREDITO

    Beggining é um estudo sobre resiliência feminina, um estudo de indivíduos e não uma reflexão sobre a prática cristã.

    Existem ali pessoas que são tocadas por um mistério, que é a fé, mas não é a religião que me interessa e, sim, a experiência individual, a vivência de uma mulher num espaço de repressão.

    O silêncio é uma parte essencial da geografia humana que nos rodeia e, através dele, é possível perceber a beleza natural e existencial à nossa volta.

    E este filme requer a cumplicidade do espectador para entramos na psique da personagem central, que encontrou no silêncio um modo de resistir.

    Nossa nota

    4,5 / 5,0

    Assista ao trailer original:

    Produzido por Carlos Reygadas, Beginning já está disponível na plataforma MUBI.

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