TBT #116 | Tudo Sobre Minha Mãe (1999, Pedro Almodóvar)

    Pedro Almodóvar é sinônimo de divergência de opiniões. Não porque seus filmes em si sejam o motivo principal de estranhamento do público não-simpatizante de seu estilo, mas a escolha de temas, por vezes “desconfortáveis” e a abordagem peculiar que o diretor exerce sobre eles acaba por gerar tantos fãs quantos críticos severos de sua obra. No entanto, até os que torcem o nariz diante dos filmes e roteiros do cineasta têm que admitir que seu nome já é um tópico da história do cinema, e Tudo Sobre Minha Mãe é, definitivamente, um exemplar notável de sua admirável filmografia.

    SINOPSE

    Esteban (Eloy Azorin) é um jovem de 17 anos que está escrevendo uma história chamada Tudo Sobre Minha Mãe. No dia do seu aniversário, sua mãe Manuela (Cecilia Roth) ia lhe contar tudo sobre seu pai, desconhecido para o menino. Mas um acidente impede que isso aconteça, e a mãe de Esteban decide partir atrás do pai de seu filho.

    ANÁLISE

    À medida que percebemos os estágios do luto e da aceitação de Manuela, conseguimos destrinchar a sua relação com o filho, e do quão a presença das outras mulheres pode “substituir” esse vazio depressivo. Aos poucos, a enfermeira reconhece pequenos detalhes de seus comportamentos nas características das companheiras de jornada, e esse entendimento fortalece cada vez mais profundamente a relação.

    Agrado (Antonia San Juan) e Rosa (Penélope Cruz), por exemplo, guardam memórias dolorosas de um passado não tão distante e se agarram à saudade como fio condutor de suas histórias, como se dependessem somente dessas sensações. Afinal, não é fácil se desprender de memórias e momentos quando tudo remete a esse dolorido sentimento.

    A atriz Antonia San Juan em seu monólogo como Agrado.

    Todas ali, sem exceção, têm uma função no enredo, independentemente do nível de relevância. Agrado é a responsável pela fala sobre a necessidade de ser autêntico em meio a tanta cópia. Discutindo fortemente temas sobre a sexualidade, o gênero e os estereótipos, a personagem carrega consigo um enorme desapego às cópias e um sentimento de liberdade para ser quem é, apesar das barreiras e dos julgamentos. Nesse sentido, aos poucos, se transforma na figura mais humanizada e complexa da narrativa, servindo como “ponte” entre os tipos que percorrem pela trama e seus devaneios. Mais do que isso, um exemplo vivo da filosofia existencialista, sempre se questionando sobre atitudes e as sensações que guarda na alma.

    Logo de cara, uma das características principais de Almodóvar se faz notar. Uma sinopse que possui todos os preceitos para ser desenvolvida como um verdadeiro drama é classificada de comédia. Não é erro. O diretor faz com que um roteiro potencialmente denso ganhe ares cômicos, como se desejasse mostrar que nada é tão grave assim.

    Dessa forma, se desenvolve mais uma vez nesse filme, assim como em inúmeros outros da carreira do diretor, uma trama envolvente, surpreendente e instigante. A impressão que o diretor deixa no espectador é que ele está no domínio total da obra, talvez justamente porque é ele a assinar também o roteiro. Almodóvar parece o único capaz de poder materializar as cenas que escreve com tanta maestria.

    Novamente se faz presente a figura feminina como centro de uma trama que envolve os já conhecidos elementos patológicos, por assim dizer, frequentemente escolhidos pelo diretor para habitar suas tramas.

    Esteban é um jovem que ganha como presente de aniversário uma ida ao teatro com sua mãe. Ao esperarem a atriz principal na saída para pedir um autógrafo, Esteban é atropelado e morre, justamente após sua mãe prometer que contaria a verdade sobre o pai que o jovem nunca chegou a conhecer. Após o acontecimento trágico, Manuela, a mãe do garoto, parte em busca de seu ex-marido, procurando uma espécie de catarse pela morte do filho ao mesmo tempo em que procura resolver pendências do passado.

    O filme está repleto de referências culturais que o colocam dentro da tradição do melodrama dos anos 50, elementos que são sutilmente entrelaçados na narrativa e nunca ameaçam diminuir a temperatura emocional.

    Os quesitos técnicos do longa merecem atenção. A já elogiada direção cuidadosa de Pedro Almodóvar eleva o nível do filme, permitindo uma conexão entre a ficção e a realidade e realizando enquadramentos que valorizam as expressões dos personagens, assim como a trilha sonora impecável.

    Do início ao fim, somos hipnotizados por esse universo, como se fizéssemos parte dele e conhecêssemos cada detalhe da trama, e pelas referências clássicas que o diretor promove, tal qual A Malvada (1950) e Uma Rua Chamada Pecado (1951), que engrandecem o enredo.

    Uma obra tão rica e complexa não poderia passar despercebida pelas premiações ao redor do mundo. Tudo Sobre Minha Mãe faturou diversos prêmios, entre eles o Oscar e o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro, a Palma de Ouro de Direção para Almodóvar em Cannes e sete prêmios Goya, incluindo Melhor Filme e Diretor.

    VEREDITO 

    Há um verdadeiro mergulho de Pedro Almodóvar no destaque da mulher, com toda a delicadeza e fúria necessárias para tratar questões de gênero, entre outros assuntos.

    O filme é materno desde o seu título. A sensibilidade de Almodóvar sempre desarma. O afeto de criaturas calejadas, como Agrado, é um mistério e uma dádiva. Uma bela e bem construída ode à beleza, complexidade e mistério que desengendra da condição de ser mulher.

    Nossa nota

    5,0 / 5,0

    Assista ao trailer legendado:

    Tudo Sobre Minha Mãe está disponível nos serviços de streaming MUBI e Telecine.

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