O cenário nacional de quadrinho é rico, belo, muito empolgante pela pluralidade de mentes criativas tão brilhantes que usam da nossa cultura, realidade e até mesmo os nossos sonhos para contar belas histórias como é o caso de Estados Unidos da África escrito por Anderson Shon com arte feita Daniel Cesart.
O quadrinho vencedor da 36° edição do Troféu HQMIX nas categorias Publicação Independente Edição Única, Novo Talento para Daniel Cesart, teve a sua primeira edição publicada em 2023 após uma campanha de sucesso no Cartase e um segunda edição no ano seguinte com a distribuição da Bebel Books.
A história de Estados Unidos da África é sobre Serge Ekondo, um homem comum, pedreiro, nascido na República dos Camarões, casado com a professora Julien e pai de duas crianças. Após ser guiado pela entidade Mama Bamiléké, ele se torna o super-herói Rei Bantu, tendo como grande missão acabar com as injustiças e os sofrimentos sistêmicos que o povo preto vive até hoje. Nessa jornada, ele vai entender que não são apenas seus poderes que representam a solução para essas questões.

Em um primeiro momento, o que mais ganhou a minha atenção ao ler as primeiras páginas de Estados Unidos da África foi a excelente combinação entre prosa e história em quadrinhos. A experiência de leitura se torna mais bela porque lemos, imaginamos e, logo ao lado, temos isso traduzido em uma imagem que corresponde ao que estamos pensando sobre os personagens e a ambientação desse universo altamente rico.
Mas essa riqueza não está apenas no conjunto de desenho e roteiro. Podemos refletir sobre eles separadamente, através do trabalho primoroso realizado pelo quadrinista Daniel Cesart, que nos brinda com aspectos visuais, referências do nosso mundo real e uma construção criativa que resulta em algo tão poético e crítico, a ponto de seu desenho expressar os sentimentos dos personagens de forma tão profunda quanto as palavras escritas.
Em Estados Unidos da África, nós, pessoas negras, podemos ser perfeitamente representados cultural e visualmente, sendo isso emocionante e muito inspirador.

Quanto ao roteiro, é muito interessante como ele funciona de forma coesa entre o quadrinho, a prosa e uma perspectiva acadêmica que me agradou imensamente, incorporando no enredo referências como Conceição Evaristo, Bob Marley e Nelson Mandela, que transformam o universo dessa história em um elemento vivo, em constante crescimento. Essa combinação de elementos torna Estados Unidos da África uma obra que não é apenas um quadrinho pelo entretenimento, mas uma narrativa fortemente política, com excelente representação e um viés acadêmico que não encontramos com tanta facilidade nesse meio.
É importante ressaltar que a grande beleza no conjunto dessa HQ está em romper com alguns estereótipos que o gênero de super-herói costuma reforçar, como o protagonista que é apenas um guardião e não se atenta a ser uma figura transformadora no seu mundo.

O Rei Bantu não é apenas aquele herói de ação com grandes combates. Na verdade, podemos observar que sua grande luta é enfrentar os males do povo negro, que vão além de tanques e bandidos armados: trata-se de toda uma estrutura social que explora o continente africano há séculos, e que a história eurocentrada faz questão de esquecer por ser parte dessa destruição.
Muito me agrada ler histórias com protagonistas negros, onde essas figuras heroicas são construtoras em sua essência. Da minha perspectiva, Serge é exatamente esse tipo de personagem, desde sua origem, pela profissão, passando pela relação com Julien, sua esposa, e seus filhos, onde ele carrega o sonho de algo muito melhor para eles, sonho que, ao se transformar em Rei Bantu, se estende para toda a população do continente africano em um plano de união.
Em quadrinhos, geralmente existe uma suspensão de crença na construção de mundo. Nesta obra, Shon e Cesart seguem um caminho oposto, colocando elementos da nossa realidade, citando pessoas, fatos e acontecimentos que se mesclam à faceta ficcional, transmitindo ao leitor uma mensagem esperançosa e otimista.
Estados Unidos da África é uma HQ que representa a força do cenário nacional de quadrinhos: uma história poderosa, marcante, poética e profundamente emocionante, sobre um herói que luta não apenas com sua força física, mas também com seu intelecto e carisma, para criar um mundo no qual pessoas negras não vivam em sofrimento, mas com a esperança de dias melhores.

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