“Medo. O medo é o abandono da lógica. O abandono voluntário dos padrões racionais. Mas, ao que parece, o amor também. O amor é abandono da lógica. O abandono voluntário dos padrões racionais. Nós cedemos a ele ou o combatemos, mas não existe meio termo. Sem ele, não somos capazes de existir com sanidade sob condições de absoluta realidade.
A Residência Hill, desprovida de sanidade, ergue-se contra os montes abrigando a escuridão. Foi assim durante 100 anos, e talvez seja por mais 100. Em seu interior, as paredes continuam de pé, os tijolos se unem em simetria, o assoalho é firme e as portas estão fechadas.
O silêncio repousa soberano sobre madeira e pedra na Residência Hill. E os que andam por lá… Andam juntos.”
(Steve Crane)
O terror conta com vários subgêneros, Home Invasion, Slasher, Thriller, Found Footage, entre outros. E é muito interessante quando algum diretor ou roteirista pega um deles e cria uma nova interpretação, mostrando como o gênero é capaz de tocar em temas que fazem parte do aglomerado de sentimentos inerentes ao ser humano. O cineasta americano Mike Flanagan soube fazer isso com maestria com a vertente da casa mal-assombrada em A Maldição da Residência Hill, nova série original da Netflix criada e dirigida por ele, ao abordar drama familiar, traumas de infância, culpa, luto e o medo sob uma camada superficial de história de fantasmas.
Flanagan já é bem conhecido entre os amantes do terror, creditado por filmes como O Espelho (2013), Ouija: Origem do Mal (2016), Hush: A Morte Ouve (2016) e Jogo Perigoso (2017); o diretor vem se destacando a cada nova produção, e em A Maldição da Residência Hill ele chega a seu melhor trabalho.
A série, que é baseada no clássico romance A Assombração da Casa da Colina, da autora Shirley Jackson, lançado em 1959 – após a leitura de um artigo científico que realizou experimentos tentando comprovar a existência de alguns fenômenos sobrenaturais em uma casa mal-assombrada -, acompanha os Crane, uma família atormentada, que anos atrás foi assombrada por fantasmas e outros acontecimentos na Residência Hill, uma casa antiga que esconde muitos segredos. Atualmente, alguns eventos fazem com que determinados membros dessa mesma família retornem ao local e confrontem seus medos.
A ESTRUTURA NARRATIVA
A Maldição da Residência Hill tem uma estrutura narrativa muito interessante. Com uma história não linear, acompanhamos os acontecimentos em duas linhas temporais diferentes – as crianças, em 1982, e quando elas já estão adultas. O design de produção – que é um show à parte –, a fotografia e o figurino exercem um papel importante para situar o telespectador na trama, pois existe um vai e vem muito frequente entre passado e presente. Mesmo fazendo um ótimo uso desses recursos, a troca contínua de linha temporal pode deixar algumas pessoas confusas em determinados momentos, por conta disso essa é uma série que exige o máximo de atenção de quem estiver assistindo.
O ROTEIRO
Outro ponto alto de A Maldição da Residência Hill é certamente o roteiro. Com um texto forte e imersivo, a série toca em temas como trauma, culpa, luto, entre outros, envolvendo quem assiste de maneira surpreendente. Por ter uma narrativa pouco convencional, principalmente para o terror, a produção foge de clichês estabelecidos ao longo dos anos – como os famosos jump scares –, mas quando se propõe a dar susto, acerta em cheio. No decorrer dos capítulos, o texto cresce muito em termos de desenvolvimento de personagem, criação de tensão e imersão do público.
Ainda sobre o roteiro, destaco também aquilo que eu considero ser o coração da série: seus personagens. Cada um deles tem sua própria personalidade, dramas, particularidades e complexidade – a cada novo episódio fica ainda mais interessante acompanha-los; sentimos como parte daquela família, e quando um membro dela sofre, sofremos juntos.
O ELENCO
Essa dinâmica entre público e personagens não seria possível se não fosse o excelente elenco. Carla Gugino interpreta Olivia, a matriarca dos Craine, ela é uma ótima atriz e aqui não entrega menos do que é esperado dela; Henry Thomas, (nosso eterno Eliot do clássico E.T. – O Extraterrestre) que dá vida à versão mais nova do pai das crianças, também está ótimo, assim como Timothy Hutton, responsável por viver o Hugh mais velho. Em seguida vêm os irmãos. Temos Michiel Huisman (Game of Thrones) que é Steve, o irmão mais velho; a brilhante Elizabeth Reaser (Crepúsculo) como Shirley, uma mulher controladora, autoritária e protetora; Kate Siegel vive a Theodora, uma das personagens mais interessantes, ela é responsável por um dos momentos mais marcantes de toda a série onde Siegel prova ser uma atriz e tanto.
Oliver Jackson-Cohen e Victoria Pedretti interpretam os gêmeos Luke e Eleanor, respectivamente. Ambos nos passam o senso de vulnerabilidade e desconforto, eles são os que mais foram afetados e os que mais sofreram com as consequências dos eventos ocorridos na Residência Hill, principalmente pelo fato de serem os mais novos, o que facilita a identificação e a imediata admiração do público.
Um dos diferenciais de A Maldição da Residência Hill é dar espaço suficiente para que seus personagens tenham um desenvolvimento completo, o arco de cada um deles é repleto de momentos carregados de emoção, simbolismos e tragédias. É válido ressaltar também o talento dos atores mirins que interpretam os irmãos quando estes são jovens – Stranger Things não é a única série da Netflix com crianças talentosas.
A DIREÇÃO
O 6º EPISÓDIO
Os aspectos técnicos também ganham seu lugar de destaque em A Maldição da Residência Hill, especialmente no impecável sexto episódio, Duas Tempestades, que é basicamente uma aula de sincronismo, planejamento, tanto narrativo quanto da equipe, atuação e direção. Todo o episódio – que precisou de cinco dias para ser gravado – é composto por cinco planos-sequência maravilhosos. Durante uma entrevista para o site americano Entertainment Weekly, Flanagan contou detalhes sobre como a longa e trabalhosa produção foi feita, em um set de filmagem criado especialmente para o episódio – até um elevador foi construído.
“O elenco teve duas semanas conosco no ensaio. Foi como se fosse um programa de TV ao vivo. Em última análise, são cinco filmagens longas e fizemos uma por dia durante cinco dias. Quase nos matou, quase matou todo mundo.”
Além disso, a atmosfera criada pela direção e edição é incrível, todas as cenas noturnas com a neblina envolvendo a casa, aliado com a excelente trilha sonora composta por The Newton Brothers, ajuda a aumentar a imponência do ambiente – a própria abertura contribui para isso.
Confira o making-off do sexto episódio (áudio original):
OS FANTASMAS
Não tem como falar de A Maldição da Residência Hill sem falar dos fantasmas. Ao longo de toda a série muitas dessas criaturas aparecem escondidas nos cantos ou no escuro. Também tem aqueles que aparecem com certa frequência, como é o caso do “Homem de Chapéu” e da “Mulher do Pescoço Torto”. Mas, não menos importante, gostaria de focar aqui nos espíritos não literais. Aqueles que fazem parte da vida de muitas pessoas. Assim como a família Crane, muitos de nós convivemos com fantasmas desde criança. Desde antes de sabermos que estavam lá:
“Fantasmas são culpa. São segredos. São arrependimentos e fracassos. Mas muitas vezes um fantasma é um desejo. Como o casamento é um desejo. Ele pode ser como uma casa. Ele pode ser assombrado.”
Essa sacada do roteiro de utilizar fantasmas para abordar questões essencialmente humanas é o que diferencia A Maldição da Residência Hill de outras narrativas de horror com mesma temática.
Atenção! Alerta de SPOILER a partir daqui, se você ainda não assistiu A Maldição da Residência Hill, não continue.
O QUARTO VERMELHO E O FINAL ALTERNATIVO
Durante toda a série existe um mistério envolvendo um cômodo da casa: um quarto que tem uma porta vermelha. Nenhuma chave, nem mesmo a mestra, consegue abri-la, tanto os pais quanto as crianças tentam de várias formas, no entanto nada funciona. Felizmente, só no final é que vamos descobrir o que é o tal Quarto Vermelho. Na verdade, é revelado ao espectador que o quarto é um ser capaz de se apegar àqueles que conseguem entrar e criar uma experiência curiosa. Tal como a Sala Precisa da franquia Harry Potter, o Quarto Vermelho é um ser transmorfo, capaz de assumir diferentes formas e ambientes dentro do mesmo cômodo para atrair os membros da família – geralmente para criar uma utopia para seu hospede.
A janela retangular que sempre estava ao fundo dos ambientes nos quais o quarto se transformava é a principal pista do desfecho. Ao final da série vemos a família conseguindo escapar e tendo uma vida normal. Entretanto, a ideia inicial de Flanagan não era tão otimista.
Originalmente, ele pensou em por a mesma janela ao fundo do cenário no qual os irmãos comemoram os dois anos que Luke está limpo, dando a entender que eles não se livraram da ameaça. Mas, para a felicidade de uns, e tristeza daqueles que queriam um término mais dramático, o diretor optou pelo corte mais otimista.
Em entrevista para a Thrillist, o diretor explicou:
“Falamos por muito tempo sobre colocar a janela do Quarto Vermelho, aquela estranha janela vertical, no fundo dessa cena. No fim decidi que não. Era cruel demais. Mas conversamos muito sobre essa paz não ser real. Na versão final, acredito que é completamente real. Nos comprometemos com essa narrativa“.
A Maldição da Residência Hill se destaca entre as recentes produções originais da Netflix e é um horror para ninguém colocar defeito (ou não), mas se você gostou de A Bruxa (2016) e Hereditário (2018) com certeza vai adorar essa nova empreitada do gênero.
PUBLICAÇÃO RELACIONADA | Hereditário: Por que você deve assisti-lo
E aí, já conferiu a série? Todos os episódios estão disponíveis na gigante do streaming. Corre lá! E depois conta para a gente o que achou.