Não! Não Olhe! e a espetacularização dos dias de hoje

    E lançarei sobre ti coisas abomináveis, e envergonhar-te-ei, e pôr-te-ei como espetáculo.”

    Há pouco mais de duas semanas chegou aos cinemas brasileiros o filme Não! Não Olhe!, do diretor estadunidense Jordan Peele. O diretor conhecido por filmes como Corra! (2017) e Nós (2019), nos levou ao longo de sua carreira no assento do diretor a criticar a sociedade como parte realmente não-inclusiva e que tem um importante papel na marginalização de indivíduos considerados de segunda ou terceira classe.

    Daqui em diante, o texto conterá spoilers do filmes.

    Em seu terceiro filme, Peele faz uma ferrenha crítica à atual sociedade e o que parece ser o natural movimento de espetacularizar vivências cotidianas, ou fatos e aspectos terríveis do que é ser humano. Quando contrastamos o passado com o presente, entendemos que esse aspecto é um fator inerente aos dias de hoje, visto que as atitudes e ações de qualquer um – em um dia ruim – pode ser registrada após alguém sacar um smartphone do bolso. Mas não apenas isso, com redes sociais que bombam seja por dancinhas, e a desinformação que vídeos curtos passam, as “páginas de fofocas” e redes sociais de vídeos tendem à faturar cifras inacreditáveis em cima do espetáculo que é criado em cima dos mais diversos aspectos da vivência.

    Se você vai ao cinema esperando se deparar com profundos personagens no mais novo longa de Peele, engana-se, o personagem mais profundo e importante para a trama de Não! Não Olhe!, é o espetáculo. Isso mesmo, você não leu errado.

    Peele tende a brilhar fazendo uso de alegorias para passar suas mensagens, e ainda que alguns espectadores não entendam e vejam seus filmes meramente como filmes de horror ou terror, o diretor faz duras críticas ao racismo em seu Corra!, e aos indivíduos que são deixados à margem da sociedade, vivendo em condições sub-humana em Nós.

    A expressão que dá nome ao filme no original “Nope“, conta com alguns significados diferentes. Além do clássico “Não” – essa expressão é usada diversas vezes por OJ (Daniel Kaluuya) ao longo do filme -, NOPE também pode indicar “Not of Planet Earth“, em tradução literal, Não é do Planeta Terra. Como o jornalista Gabriel Perline apontou em seu texto sobre o longa, outra expressão que pode ser usada para NOPE é “Not Our Planet Earth“, em tradução livre, Não é o nosso Planeta Terra.

    Tenha em mente, que este texto é como esse que vos escreve entendeu o longa e resolveu numa manhã de segunda-feira exprimir os sentimentos que o mesmo me causou.

    GORDY, TRAUMAS E O ESPETÁCULO

    O longa tem início, nos apresentando uma das tramas que nele serão abordadas. Sem muitas explicações, vemos o set de gravação da série fictícia “Gordy’s Home“, no dia em que um incidente marcaria a vida de Jupe Park (Steven Yeun) para sempre. Mas não apenas isso. Desde seus primeiros minutos, o filme nos apresenta o indício de que existe uma força além do que entendemos naquele lugar. Vide, o sapato que para em pé, desafiando todas as leis da física.

    Os traumas presentes nos personagens do longa vão além de sua participação, ou do subliminar. O distanciamento de Emerald (Keke Palmer), as “obrigações” de OJ nos apresentam que a trama não é o que muitos pensam, mas enquanto o negócio da família parece afundar, conseguir uma filmagem que os deixarão famosos como Oprah, é tudo que eles podem tentar agora.

    O espetáculo do longa é o que nos permite entender que para alguns indivíduos, o espetáculo em si é a única saída. Mas tem também a função de nos fazer compreender a relação que cada um dos personagens do filme tem com espetáculos em si.

    Enquanto Jupe se aproveita de uma “força da natureza” que ao mesmo tempo nos é tão estranha para lucrar, a tão sonhadora Emerald vê naquela criatura não apenas a chance de salvar o negócio da família, mas também a sua verdadeira chance de se tornar famosa. O introspectivo OJ, que cresceu cuidando dos animais, e parece ter pouco ou quase nenhum traquejo social, em um impulso de desviar o olhar – que parece ser algo natural ao personagem – é o primeiro a notar que a única saída para encrenca pode ser a ação que dá nome ao filme, não olhar.

    A relação desses três personagens nos apresenta três aspectos quase que primitivos da vivência humana, geralmente presentes em espetáculos.

    • Jupe Park representa a vaidade por trás dos espetáculos. Os dias atuais e a democratização do espaço de fala por todos os indivíduos trouxe grandes benefícios, mas também nos mostrou as terríveis facetas humanas, que anteriormente ficavam reservadas às pequenas relações, normalmente as mais íntimas. Em um mundo em que ninguém é bom o tempo todo, a trama exalta que essas relações e facetas geradas por vaidade tendem a ruir com o tempo. Podemos traçar as atitudes do personagem com as “ações de bondade” disfarçadas de palco para que as pessoas se sintam melhores com elas mesmas, a exemplo de “doações” para pessoas necessitadas que têm uma câmera em seus rostos;
    • Emerald Haywood representa a ganância por trás do espetáculo. Ainda que pareça ter boa intenção, Emerald se aproveita de todas as oportunidades para fazer seu sonho de ser famosa acontecer. Se aproveitando desde o negócio familiar para panfletar sobre suas habilidades, até mesmo uma oportunidade de fazer a gravação que os deixará famosos “tipo Oprah”;
    • Otis Jr. representa a esperança por trás dos espetáculos. Em uma tentativa de manter o negócio da família, Otis vende seus cavalos para Jupe Park na esperança de um dia comprá-los de volta – sem saber o fim que esses animais têm. Quando Emerald vê no Jean Jacket – o alien do filme – a oportunidade de lucrar, Otis logo embarca nessa aventura a fim de ganhar dinheiro e salvar o negócio da família de qualquer maneira. O personagem vê em suas ações uma importância para chegar a algum lugar.

    Aspectos alegóricos que já fazem parte das direções de Jordan Peele é o que costumam tornar o filme palatável para grande parte do público. Não fazendo apenas uma ambientação de mundo, mas também um aprofundamento da trama, Peele faz referência a OJ Simpson no filme e ao papel sensacionalista que a imprensa teve durante sua prisão em 1994.

    A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO

    Como explicitado no livro A Sociedade do Espetáculo de Guy Debord:

    O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens. O espetáculo não pode ser compreendido como abuso do mundo da visão ou produto de técnicas de difusão massiva de imagens. Ela é a materialmente traduzida como uma visão cristalizada do mundo.”

    Ou seja, o mundo que vemos a partir do espetáculo quase sempre é irreal, retratando normalmente um recorte sensacionalista de um mundo ou uma realidade que não necessariamente existe. O espetáculo que as redes sociais, os vídeos curtos e até mesmo jornais sensacionalistas eventualmente vinculam, normalmente não refletem uma realidade, costumando quase sempre apresentar apenas um lado da vivência cotidiana, sem representar todas as partes igualmente.

    O estrelado sonhado por grande parte dos influencers ou indivíduos que esperam e fazem a todo custo vídeos que explodam do dia para a noite, gerou um movimento que tende representar e estabelecer espetáculos relacionados à pequenos acontecimentos e fatos privados das vidas de indivíduos naturalmente famosos.

    A relação que esse espetáculo tem com a sociedade que é mediada e mediatizada por imagens que apresentam recortes, giram em torno também de indivíduos que não sabem viver em um mundo além das telas. O excesso de informação e selfies geralmente postadas por estes indivíduos apresentam uma relação duvidosa e conflituosa. Um estudo de 2021 apresentou que muito indivíduos narcisistas tem na realidade uma baixa autoestima, chegando a se odiar. E esse ódio, é o que os costuma mover.

    Não! Não Olhe! apresenta um aspecto importante da nossa relação com espetáculos. Os indivíduos que naturalmente olham para fora, não costumam olhar para si, e quando o fazem, sentem uma profunda aversão e repulsa. Esse aspecto é explicitado em alguns momentos ao longo do filme seja no reflexo que assusta o cavalo em uma das primeiras sequências, ou no repórter do TMZ com capacete espelhado. Esses arcos nos permitem entender que o longa de Peele vai muito além de um sci-fi com uma narrativa espetacular.

    Não! Não Olhe! está disponível nos cinemas de todo o Brasil. Confira nosso vídeo crítica do filme:

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