Deuses Americanos: Uma análise sobre a demissão de Orlando Jones, o Mr. Nancy

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Na metade de Dezembro de 2019, a notícia de que Orlando Jones, responsável por dar vida a Mr. Nancy na série Deuses Americanos – transmitida pela emissora STARZ – havia sido demitido pegou muitos fãs, incluindo eu, de surpresa.

Diante de uma situação desse tipo é sempre importante manter-se imparcial até que todos os motivos sejam apontados, pois quando se trata do “tribunal de internet” qualquer deslize resulta em um linchamento virtual. Porém a imparcialidade que busquei manter “morreu na praia” quando o real motivo por trás da demissão foi que a raiva do personagem que Orlando interpretava “manda uma mensagem errada para negros do Estados Unidos” – palavras da equipe responsável por dirigir a série.

Para entender melhor isso vamos voltar para a primeira temporada de Deuses Americanos, lá em meados de abril de 2017.

Para quem não está familiarizado, a série é baseada em um romance publicado em 2001, pelo autor Neil GaimanSandman, Marvel 1602, Coraline, Lugar Nenhum. O romance é uma mistura perfeita entre drama e fantasia com uma pegada mitológica, porém um pouco mais moderna. Em resumo, a premissa da obra é que deuses e criaturas mitológicas existem porque humanos acreditam neles. Porém, a medida em que os anos se passam as crenças de seus adoradores diminuem, por conta disso novos deuses começam a surgir e diante disso uma guerra está preses a acontecer.

Mr. Ibis, deus egípcio Thoth – Deus do conhecimento, da sabedoria e da escrita, da música e da mágica. Mr. JaquelAnúbis, Deus dos mortos e responsável por guiar a alma dos mortos no submundo. BilquisRainha de Sabá Deusa que representa o amor. Czernobog, Deus da morte da mitologia eslava. Irmãs Zorya representam a Estrela da Manhã e Estrela da Noite – na cultura eslava são duas irmãs, já na série existem três, a última representa a Estrela da Meia-Noite. Jinn que não é um Deus e sim um Ifrit do Oriente Médio. Mad Sweeney que é um Leprechaun. Mr Wednsday que nada mais é do que o próprio Odin. E por último e responsável por essa publicação: Mr. Nancy, ou Anansi, um Deus do folclore africano que representa o espirito do conhecimento de todas as histórias. Esses, entre outros deuses, fazem parte do elenco de Deuses Americanos. Mas qual é a importância de Mr. Nancy para a narrativa da série?

Bom, para começar, Mr. Nancy é trazido para América, como é visto no segundo episódio da primeira temporada, através de um adorador que é posto na condição de escravo, sem entender o motivo pelo qual foi posto no interior de um porão de um navio o então escravo pede ajuda para Anansi. Aqui vale ressaltar que a interpretação de Orlando na pele do Deus é simplesmente de tirar o fôlego, pois não existe sutileza alguma em suas palavras pesadas quando ele se refere a história dos negros nos Estados Unidos.

ALERTA DE SPOILER

“‘Era uma vez um homem que se fodeu’. Gostaram dessa história? Porque essa é a história dos negros nos EUA.”

Simples assim. O típico dedo na ferida. E ele continua.

“Merda. Vocês ainda nem sabem que são negros. Acham que são só pessoas. Deixe-me ser o primeiro a contar-lhes que todos vocês são negros. No momento que esses holandeses puseram o pé aqui e decidiram que eles eram brancos, e vocês eram os negros, e essa é a forma gentil que eles chamam vocês… Deixe-me ilustrar o que espera por vocês na costa. Vocês chegam nos EUA, terra das oportunidades, leite e mel, e adivinhem? Vocês todos serão escravizados. Serão separados, vendidos e trabalharão até morrer. Os sortudos folgarão no domingo para dormir, foder e fazer mais escravos. Tudo isso, pelo quê? Por algodão? Anil? Por uma camisa púrpura? A única boa notícia é que o tabaco que seus netos cultivarão de graça vai dar muito câncer nesses desgraçados. E eu ainda nem comecei. Cem anos depois, vocês ainda estarão fodidos. Cem anos depois disto. Fodidos. Cem anos depois de serem libertos, ainda estão sendo fodidos nos empregos e sendo baleados pela polícia. Entendem o que estou dizendo?”

“(…)Este cara entende. Eu gosto dele. Ele está ficando com raiva. Raiva é boa. Raiva… Faz coisas acontecerem. Vocês derramam lágrimas por Anansi, e aqui ele está dizendo a vocês que estão olhando diretamente para 300 anos de subjugação, merdas racistas e doenças cardíacas. Ele está dizendo a vocês que não há nenhuma razão para que vocês não subirem agora e cortarem as gargantas de cada um desses escrotos e atear fogo neste navio!”

Confesso que já vi esse episódio diversas vezes, pois embora não morando nos EUA eu sou negro e é impossível não se arrepiar com a ferocidade das palavras de Mr. Nancy e suas realidades.

Outro momento mais impactante ainda ocorre no quarto episódio da segunda temporada, onde Mr. Ibis, Bilquis e Mr. Nancy conversam em uma sala, onde no centro dela há um corpo já sem vida de uma senhora negra. Nesse momento eles debatem o quanto é importante eles se prevenirem contra a guerra que se aproxima, resultada por um sentimento de retaliação por Odin que presenciou a morte de Zorya Vechernyanya, sua amiga, e protegida de Czernobog;

“Eu não sou um Deus… no sentido de que consigo tolerar exploração, opressão e repressão. Meus adoradores sabem… que liberdade não é gratuita. Eles sabem que a arma mais potente de controle do opressor, é a mente do oprimido. Sabem que a escravidão não é uma condição. Escravidão é uma seita. Tráfico humano é uma seita. A escravidão ganhou uma cara nova como direita alternativa. E assim, mais um se vai. A cada trinta segundos, mais uma garota negra, morena, amarela, parda, mestiça refugiada com a melanina na pele é levada embora. A cada… trinta… segundos. E para piorar, esses deslumbrantes donos de plantação ‘construíram canais’ para levar as crianças da escola para a prisão, mais rápido que uma bala. E os sortudos vão da escola para a NFL (A National Football League é a liga esportiva profissional de futebol americano dos Estados Unidos), onde não podem nem protestar. Foram programados desde o nascimento com uma alienação pobre, água contaminada, violência armada, brutalidade policial e trauma após trauma, após trauma. TEPT (transtorno de estresse pós-traumático)? Nada de tratamento. Desaparecido? Nada de alerta. Sozinhos. Vulneráveis. Raptados. Mais uma se vai.”

E ele continua:

“Minha rainha – se referindo a Bilquis. O mundo presume que os brancos são naturalmente bons. Então quando algo ruim acontece é uma boa pessoa que fez algo ruim. Presumem que os negros… são naturalmente ruins. Então quando algo bom acontece é apenas questão de tempo até que a verdadeira natureza desse animal o domine. Quanto tempo podemos esperar? Você – se referindo a Mr. Ibis – acompanha os dias numerando os anos para os escribas que registram a história humana. Vê algum progresso? (…)

(…) Eu contei um, dois, três deuses africanos nessa sala! E dois deles querem se conter?! E deixar o trabalho duro continuar enquanto vocês vivem suas vidas boas! A guerra está aqui. Uma senhora branca morreu. Wednesday irá vingar Zorya Vechernyanya, mas se fosse uma senhora negra… como essa doce alma… o martelo de Czernobog… não bateria.”

Voltando para a demissão de Orlando Jones. Por mais que a série conte com um elenco sensacional, ela peca no quesito de linearidade, pois sua narrativa em diversos momentos se torna confusa, mas há momentos em que você esquece desse detalhe e foca nas atuações e psicodelia. Ian Mcshane – da franquia John Wick – está no elenco e interpreta Mr. Wednesday/Odin muito bem.

Um dos detalhes que tem um pouco a ver com o fato da demissão de Orlando é que o mesmo diz que a narrativa da história deveria ser contada pela perspectiva de Shadown Moon, o protagonista negro da série, seguindo o livro de Neil Gaiman. Outro detalhe importante é que Orlando Jones não só interpretava na série, mas também escrevia, colaborando assim na construção do roteiro de alguns episódios – pedido esse feito tanto pelo criador da obra quanto o produtor Jessie Alexander – porém, essa tarefa não seria remunerada, como manda a Lei de Associação dos Roteiristas, da qual Orlando é membro.

Em entrevista ao Geeks Worldwide, Orlando comenta:

Eles tinham que me pagar. Mas disseram não. Eu disse; ‘Isso é meio racista. Vocês pagam os caras brancos e eles escrevem de casa.’. A associação requer isso. É por isso que foi tão estúpido da parte deles ficarem tão bravos comigo sobre isso.

Eu sei que o pessoal da Fremantle – produtora da série – não se importa com os personagens negros da série. Eles mesmos disseram isso para mim. Disseram que os diretores devem se concentrar na trama do Mr. Wednesday. É por isso que ele ganha destaque na 2ª temporada. A história deveria ser contada da perspectiva do Shadow Moon, e não do Mr. Wednesday. Eles disseram que rostos negros não vendem na Europa.”

Em contra partida, a Fremantle negou as acusações de Orlando:

As histórias que estamos planejando para a próxima temporada evoluíram continuamente para acompanhar a complexa mitologia do material de origem. Jones não fará mais parte da série porque Mr. Nancy, entre outros personagens, não aparecem na parte do livro que estamos focando na 3ª temporada. Não há nenhuma motivação oculta em nossa decisão.”

Vale ressaltar que até o momento Orlando Jones não foi notificado pela produtora Fremantle de sua liberação do seu contrato – contrato esse assinado para três temporadas para a série – impedindo-o de assinar como membro regular de para outras séries/produções.

Relembre os incidentes mais importantes desde 1965, via G1:

11-17 de Agosto 1965

Watts – Los Angeles. A detenção por policiais brancos do jovem negro Marquette Frye, durante uma operação na estrada provoca uma revolta no gueto de Watts, em Los Angeles. Durante seis dias, esse bairro da periferia se transforma em uma zona de guerra, onde os guardas nacionais realizam patrulhas em jipes, armados com metralhadoras. É declarado toque de recolher. O saldo é dramático: 34 mortos, muitos feridos, 4.000 detidos e danos estimados em mais de US $ 40 milhões.

12-17 de Julho 1967

Newark – Nova Jersey. Uma briga entre dois policiais brancos e um taxista negro desencadeia uma revolta no gueto de Newark. A violência dura cinco dias com um registro de 26 mortos e 1.500 feridos.

23-28 de Julho 1967

Detroit – Michigan. Distúrbios eclodem em Detroit após uma intervenção policial na rua 12, de maioria negra. Guardas nacionais e militares são mobilizados. Os confrontos deixam 43 mortos e mais de 2.000 feridos. Os distúrbios se estendem para vários estados, entre eles Illinois, Carolina do Norte, Tennessee e Maryland. Ao longo de 1967, 83 pessoas morrem em episódios de violência racial em 128 cidades.

4-11 de Abril 1968

Após o assassinato do pastor Martin Luther King em Memphis (Tennessee) em 4 de Abril, a violência se espalha por 125 cidades dos Estados Unidos, deixando pelo menos 46 mortos e 2.600 feridos. Em Washington – onde dois terços da população é negra – são registrados incêndios intencionais e saques. Um dia depois, as desordens se estendem para o centro da cidade e chegam a 500 metros da Casa Branca. O presidente Lyndon B. Johnson recorre à 82ª Divisão Aerotransportada do Exército para controlar a situação.

17-20 de Maio 1980

Liberty City – Miami. Três dias de revolta deixam 18 mortos e mais de 400 feridos no bairro negro de Liberty City, em Miami (Flórida). A violência eclodiu após a absolvição em Tampa de quatro policiais brancos acusados de espancar até a morte um motociclista negro que havia furado um sinal vermelho.

30 de Abril/1º de Maio 1992

Los Angeles. A absolvição de quatro policiais brancos que no dia 3 de Março de 1992 haviam matado um motorista negro, Rodney King, incendeia a cidade de Los Angeles. A violência se propaga para São Francisco, Las Vegas, Atlanta e Nova Iorque, deixando 59 mortos e 2.328 feridos.

9 de Abril 2001

Cincinnati – Ohio. Um policial branco mata um jovem negro de 19 anos, Timothy Thomas, durante uma perseguição em Cincinnati. Seguem-se quatro dias de violência durante os quais 70 pessoas ficam feridas. Timothy, que não estava armado, foi o décimo quinto negro abatido pela polícia desde 1995.

9-19 Agosto 2014

Ferguson – Missouri. A morte do jovem negro Michael Brown, de 18 anos, baleado por um policial provoca dez dias de violência em meio à população negra e às forças de segurança, que utilizam fuzis e veículos blindados. No dia 24 de Novembro, ocorrem novos distúrbios em Ferguson após o anúncio do abandono das acusações contra o policial.

Então não, a mensagem de Mr. Nancy não passa uma ideia errada, mas sim a dura realidade dos negros nos EUA, na terra da liberdade. Achar que a ferocidade do personagem não é pertinente – principalmente se olharmos a história dos negros nos EUA – é agir de extrema má fé. É basicamente tentar lucrar em cima de um fato existente e virar a cara para as consequências que aquilo causou.

Aqui no Brasil não é muito diferente, em tempos de seletividade penal – onde 0,6 gramas de maconha e uma garrafa de Pinho Sol gera 11 anos e 3 meses de condenação, enquanto uma agressão de um famoso a sua companheira, gravida, gera 18 dias de regime semiaberto – nada mais me surpreende, principalmente quando o agressor determina o quando o agredido tem lugar de voz.

Estou vivendo o suficiente para ver que no mundo de hoje, quando se sofre qualquer tipo de preconceito, a parte que oprimi determina até onde é conveniente ser exposta.

Seguimos.



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