CRÍTICA – 365 Dias (2020, Barbara Bialowas e Tomasz Mandes)

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CRÍTICA - 365 Dias (2020, Barbara Bialowas e Tomasz Mandes)

Para entender fenômenos, é preciso compreender os contextos aos quais estão inseridos e qual seu público-alvo. Esse é o caso do filme polonês 365 Dias, ou 365 DNI, no original, que está entre o Top 3 filmes mais assistidos no Brasil da Netflix. Fenômeno de espectadores, o longa atingiu a marca rara de 0% de avaliações positivas no site de crítica especializada, Rotten Tomatoes.

A trama repleta de apelo sexual é dirigida por Barbara Bialowas e Tomasz Mandes, baseada no livro de Blanka Lipińska, que escreveu a própria série inspirada em 50 Tons de Cinza (2015). É inevitável a comparação com o filme norte americano – mais a frente, irei destacar alguns pontos importantes sobre ambas produções. No mais, 365 Dias conta a história de Laura Biel (Anna-Maria Sieklucka), uma jovem polonesa que é sequestrada por um italiano mafioso dominador, Dom Massimo Torricelli (Michele Morrone), que almeja conquistá-la em 365 dias.

Foi uma espécie de tortura assistir às duas horas de vergonha alheia do longa. Não há clímax, não há profundidade de personagens ou trama, o roteiro é extremamente apelativo, as atuações são cômicas e não há fundamento nas ações dos personagens. Assisti aos 20 minutos iniciais do filme e parei. Comecei a questionar o por que dessa produção ter se tornado um fenômeno mundial na plataforma de streaming. Foi nesse momento que refleti sobre as inúmeras questões que a produção aborda, – ou, mais exatamente, deixa de abordar.

Antes de tudo, gostaria de destacar aquele que talvez seja o único ponto positivo desta produção: o fato de que cada vez mais os filmes estrangeiros vêm ganhando destaque e popularidade na Netflix. Isso é extremamente importante, pois descentraliza a cultura norte americana e oferece uma diversidade maior de conteúdos aos espectadores. Ainda assim, as problemáticas levantadas em 365 Dias ofuscam qualquer mérito da produção -, ou da Netflix, em disponibilizar esse tipo de conteúdo.

“Filme erótico de romance”, “drama erótico”, “suspense erótico”. Tantas formas de tentar definir o longa e sempre chagamos à palavra determinante: erótico. O dicionário define o termo como relativo ao erotismo, que provoca amor ou desejo sexual. É conflitante utilizar a palavra quando nos deparamos com situações de abusos, tanto físicos, quanto sexuais. 365 Dias não é um romance e muito menos um drama – é a fetichização compulsória da submissão sexual da mulher para mulheres.

Mesmo que o personagem Massimo diga que ele não tocará Laura ao menos que ela peça, ele frequentemente a apalpa, acaricia, molesta, e, quando ela rejeita seus avanços sexuais, ele a agarra violentamente. A trilha sonora “moderna” sugere que todas situações são emocionantes, mas na verdade a música serve para preencher um vazio de clímax – na verdade, o único clímax que o longa pode ter é o ator Michele Morrone, que frequentemente aparece sem camisa.

Eu não tenho medo em afirmar que o filme banaliza a sexualidade feminina ao nível de Massimo algemar Laura na cama e fazê-la assistir a outra mulher fazendo sexo oral nele. Não há prazer para nenhuma das duas mulheres – a não ser o prazer de satisfazer o “macho alfa”, uma cena que deixa evidente o falocentrismo da trama.

Fora da cama, o mafioso conquista a “pequena mulher” (como a personagem é denominada em certo momento) com roupas, joias e todo o luxo da vida de uma sugar babyLaura abre mão da própria carreira de sucesso para ser mimada por um homem envolvido com o mundo do crime. É triste que o esteriótipo da mulher “interesseira” seja perpetuado em um filme que acredita que o maior fetiche da mulher seja um homem rico e bonito.

Essa atitude vai contra os movimentos de independência sexual feminina nos últimos anos. As mulheres têm conquistado cada vez mais autonomia para descobrir sua sexualidade e serem donas das próprias fantasiais sexuais. No Instagram, por exemplo, há uma gama de terapeutas que ajudam e incentivam as mulheres a conhecerem o próprio corpo e os próprios desejos – e não somente os desejos dos seus parceiros. Como já dizia Rita Lee:

“Amor é um; sexo é dois.”

Histórias como a de 365 Dias e/ou 50 Tons de Cinza oferecem uma gama de emoções baratas e relacionamentos tóxicos. Aos desaviados, 50 Tons de Cinza não é nada mais que uma Fan Fiction (história que um fã recria baseado na história principal) da Saga Crepúsculo (2008 – 2012) escrito por uma mulher que leu certa vez sobre sadomasoquismo – sem conhecer bem a prática -, e resolveu adicionar o tema à história adaptada dos vampiros para “apimentar” mais seu imaginário.

Blanka Lipińska escreveu a história de 365 Dias inspirada no sucesso de 50 Tons de Cinza. Logo, se ligarmos os pontos, podemos considerar a trama e construção de personagens do longa como uma fanfic de outra fanfic sobre uma história de vampiros adolescentes. O resultado? Um filme sem pé nem cabeça.

É extremamente contraditório que hoje na Netflix o primeiro filme mais assistido da plataforma seja Mulher-Maravilha (2017) e, em terceira posição, esteja 365 Dias. O crítico de cinema, Alejandro Alemán, diz que “um filme de pornô é mais honesto” que o longa polonês. Não é exagero dizer isso, tendo em vista que a narrativa em si não se importa com a história – e sim apenas com as cenas de sexo, mesmo que sejam poucas e desinteressantes comparadas ao sensacionalismo que o filme se propõe.

365 Dias tem um público-alvo: é o mesmo que lotou as salas de cinema no mundo todo quando “o outro filme erótico” foi lançado. Não há ponto positivos a serem destacados neste longa. Por anos a sexualidade feminina foi reprimida e, para espectadores menos atentos, este seria um filme que celebraria o imaginário feminino. Porém, essa falsa celebração coloca a mulher mais uma vez em um lugar de passividade e submissão – sua vontade não importa e o prazer não é igualitário.

Nossa nota

Assista ao trailer oficial (sem legendas) de 365 Dias:

Texto publicado originalmente em Portal W3.

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