934 milhões de dólares. Essa é a marca que Coringa acaba de bater, se tornando o filme de quadrinhos mais rentável de todos os tempos – e a maior bilheteria em um filme para adultos.
Recorde de bilheteria, um Leão de Ouro na bagagem e muita aclamação pelo público. O caminho para que Coringa consiga uma indicação no Oscar de 2020 estaria basicamente certo, se não fossem alguns percalços ao longo da sua divulgação…
Coringa começou a sua saga com a crítica e premiações no Festival Internacional de Cinema de Veneza que aconteceu em Agosto deste ano. O Festival de Veneza, como a maioria já sabe, é um dos maiores e mais prestigiados festivais de cinema do mundo, sendo um termômetro fortíssimo para indicações ao Oscar.
Nas últimas duas edições do Festival, os filmes que receberam o Leão de Ouro – a premiação máxima da competição – foram os longas Roma, de Alfonso Cuáron, e A forma da Água, de Guilhermo Del Toro. Ambos os filmes foram futuramente premiados no Oscar, um como Melhor Filme Estrangeiro e o outro como Melhor Filme.
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Quando Coringa recebeu o prêmio máximo nesse ano e abriu nos agregadores de crítica – que hoje são considerados por muitos a principal fonte de quais filmes assistir ou não – com uma média de 80% de aprovação, tudo apontava que o ambicioso projeto da Warner desenvolvido por Todd Phillips iria trilhar ótimos caminhos nas próximas premiações e seria muito bem aceito pela crítica. Bem, esse fato não se confirmou.
Pouco tempo após sair de Veneza com um Leão de Ouro nos braços, o longa de Todd Phillips desembarcou nas Américas para o Festival de Cinema de Toronto, outra prestigiada premiação que atrai as atenções do mundo todo. E foi nesse momento que o jogo começou, gradativamente, a virar.
Após a exibição no TIFF, que aconteceu em Setembro, várias matérias e críticas começaram a surgir falando sobre a violência do filme e em como ele poderia inspirar ataques terroristas ao redor do mundo. A combinação da escuridão já sentida no trailer, atrelada a uma histeria quase que coletiva na internet – sem essas pessoas sequer terem assistido ao material – se tornou uma equação explosiva.
Coringa estreou no dia 3 de Outubro nos cinemas e, até o momento, sua nota no Metracritic está 59 (de um total de 100) e no Rotten Tomatoes já perdeu o certificado fresh, selo atribuído a filmes com nota 70% ou mais.
Fica a indagação: o que aconteceu com a crítica para um filme que ganhou um Leão de Ouro ter uma avaliação tão baixa se os ganhadores do mesmo prêmio em anos anteriores possuem média 80/90 de 100?
Aqui vão alguns pontos que podem ter contribuído para o enfraquecimento de Coringa perante a crítica – e sua até então iminente indicação ao Oscar 2020:
Filme de quadrinhos
Pode ser que você não acredite nessas coisas, mas filmes de quadrinhos não são os mais bem aceitos por toda a “comunidade cinéfila”. Com verbas exorbitantes, efeitos especiais caríssimos e o monopólio de quase 100% das salas de cinema, os filmes do gênero de herói possuem grande apoio dos estúdios e das cadeias de cinema. É fato que inúmeras produções não possuem a mesma facilidade para conseguir financiamento, por mais extraordinárias que elas sejam.
Em um mundo em que tudo gira em torno de quem tem mais dinheiro – e o que dará mais retorno – filmes de super-heróis e blockbusters sempre terão mais espaço do que o chamado Cinema de Arte, por assim dizer.
Quando eu comecei a rascunhar esse texto, ainda nas primeiras semanas de exibição de Coringa, a polêmica com Martin Scorsese ainda não existia. Nenhum diretor havia se pronunciado sobre os filmes de quadrinhos após o lançamento de Coringa, e eu não sabia muito bem como seria o desenrolar da mídia – em relação ao longa – após um mês de sua estreia.
Fui desenvolvendo esse artigo aos poucos enquanto acompanhava o desenrolar da polêmica, a repercussão do filme e a possibilidade de ataques terroristas pelo mundo – o que felizmente não aconteceu – cujo assunto abordo mais adiante no texto.
O ponto sobre filmes de quadrinhos – que até então parecia apenas um “possível” problema – ganhou extrema notoriedade após inúmeros profissionais da área comentarem sobre o monopólio da Marvel ao longo dos dez anos de Universo Cinematográfico Marvel. É interessante ver que, de certa forma, mesmo Coringa não se encaixando nos moldes dos filmes blockbusters de heróis, e estando mais perto de um “cinema de arte” do que outras produções do tipo, a resistência da crítica faz total sentido.
A discussão que já circulava bastante desde que Coringa recebeu o Leão de Ouro é sobre premiações servirem para dar notoriedade a filmes que não teriam o mesmo espaço sem esses reconhecimentos. O longa de Phillips por si só já faria muito barulho – o que se confirma na bilheteria -, ao contrário de um filme coreano tão impecável quanto, mas não tão conhecido.
Uma resistência da mídia à produção já era esperada durante a temporada de premiações e pelo jeito só se concretizou após as primeiras exibições do filme na América.
O termo Incel e a violência
Com a histeria instaurada em torno da temática do filme, mais e mais a imprensa passou a noticiar temas que associavam o longa a ações terroristas. Nos meses que antecederam sua estreia, o Exército Americano chegou a dar uma declaração dizendo que reforçaria a segurança após o lançamento de Coringa, e até outras autoridades foram envolvidas. Além disso, milhares de matérias começaram a pipocar na internet associando o filme ao termo Incel (celibatários involuntários).
Sobre esse tópico de Incel, especificamente, cada pessoa terá seu próprio entendimento. Entretanto, é incontestável que os meios de comunicação aproveitaram a massificação de comentários sobre o termo nas redes sociais para ganhar cliques com matérias sensacionalistas, ainda mais quando as pessoas não tinham como tirar sua própria conclusão do material do filme – que só seria lançado um mês depois.
A cada semana, novas entrevistas eram colocadas no ar, com questionamentos sobre o potencial perturbador da produção. Joaquin Phoenix chegou a abandonar uma entrevista durante a pergunta de um jornalista. Como consequência, a Warner decidiu proibir a participação de jornalistas durante a premiere do filme em Nova Iorque, buscando deixar que a produção “falasse por si”.
Um exemplo que podemos abordar especificamente – sobre a crítica – é o do The Guardian. O site possui duas críticas de Coringa no Metacritic, uma com avaliação 100 (5 de 5) e outra com avaliação 40 (2 de 5). A crítica com nota máxima foi feita durante o Festival de Veneza, e a outra foi colocada no ar no dia da estreia do filme. É interessante analisar como cada uma reflete um momento específico da trajetória do filme pela mídia até seu lançamento: o momento de aclamação em solo europeu, e o de medo e histeria em solo americano.
Apesar da avaliação mista da crítica, o filme está sendo muito bem aceito pelo público. A maquiagem de Joaquin Phoenix tem sido usada como símbolo de resistência durante os protestos no Líbano, Chile e Hong Kong, além da fantasia ser uma das mais utilizadas no Halloween desse ano.
A escada onde Arthur Fleck dança durante o filme se tornou ponto turístico de Nova Iorque, com milhares de pessoas refazendo a pose de Arthur em seu momento de aceitação como Coringa.
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Até agora, apesar de alguns acontecimentos de histeria durante algumas sessões – logo na primeira semana de exibição do filme – nenhum atentado aconteceu. Pelo contrário: o personagem causou um impacto cultural (o que já era esperado) e caiu nas graças do público.
Fãs e o Coringa das HQs
Muitas críticas têm abordado o fato do Coringa de Todd Phillips não ser, de fato, o Coringa da DC. As reclamações vão desde problemas com o personagem (“não é igual ao das HQs”) até o filme poder ser sobre qualquer pessoa, sem necessidade de levar o nome do personagem.
Muitos “fãs desde que nasceram” do personagem relatam não haver nenhuma referência emblemática da história do palhaço Príncipe do Crime e, por esse motivo, a frustração é bem grande por parte dos fãs fervorosos das HQs.
Esse apego às histórias das HQs se reflete em várias críticas, dificultando que o longa seja avaliado por sua qualidade de direção, técnica e roteiro.
Antes do lançamento de Coringa, o diretor Todd Phillips alertou várias vezes que o filme não iria adaptar nenhum arco conhecido do personagem, muito menos ser fiel à nenhuma HQ. Aparentemente, mesmo assim, a falta de fidelidade a histórias tradicionais incomodou muitos críticos.
Todd Phillips
Quando Coringa começou a receber críticas mais pesadas, Phillips deu algumas declarações não tão amistosas e que acabaram dividindo ainda mais a mídia e os possíveis votantes em relação ao filme. Contestações políticas e citações infelizes se tornaram um ingrediente a mais, tornando a produção ainda mais divisiva.
Após as falas polêmicas de Todd Phillips, o diretor não deu mais declarações, evitando dificultar ainda mais a campanha do filme para o Oscar do próximo ano.
Coringa e o Oscar 2020
Coringa é um dos melhores filmes do ano, e Joaquin Phoenix entrega uma atuação irretocável. Entretanto, a iminente indicação ao Oscar – que ganhou força após o Leão de Ouro – deixou de ser uma certeza. Com toda a narrativa conduzida pela mídia, a repercussão de outras grandes produções e o medo anteriormente instaurado (por conta da violência do filme), é um pouco complicado afirmar que as indicações serão realidade.
Apesar da Warner ter submetido o longa em 14 categorias, talvez as que tenham mais força para realmente concorrer sejam as categorias técnicas e a de Melhor Ator – em que Joaquin Phoenix é uma unanimidade. Ainda assim, o risco dos votantes não quererem se envolver com a “polêmica” produção é grande. Como já noticiamos aqui no Feededigno, votantes deram suas impressões após a exibição do filme, mostrando o quão dividida a Academia está.
É difícil imaginar que depois da ótima bilheteria, grandes prêmios e aceitação pública – além da histeria sobre a violência ter sido apenas um excesso de preocupação – o Oscar não dê espaço para Coringa em 2020. Com O Irlandês, Parasita, O Farol, A Marriage Story e tantos outros que estão sendo ovacionados pela crítica, Coringa pode acabar sem ser indicado como Melhor Filme, porém pode correr por fora nas outras categorias da competição.
Agora é torcer que pelo menos a atuação de Joaquin Phoenix se sobressaia e ele consiga, finalmente, ganhar a sua tão merecida estatueta.
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